Reforma tributária: por que construtoras com SPEs precisam redobrar atenção?
Área: Contábil Publicado em 08/10/2025A reforma tributária, inaugurada pela Emenda Constitucional nº 132/2023 e regulamentada pela Lei Complementar nº 214/2025, foi anunciada como um marco de simplificação e neutralidade. O novo modelo prevê a substituição do PIS e da Cofins pela Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) e do ICMS e do ISS pelo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), além da extinção do IPI, mantido apenas em caráter seletivo para alguns produtos. Essa reorganização busca uniformizar a tributação sobre o consumo. No entanto, um ponto específico desperta inquietação: a tributação das operações entre partes relacionadas. Para empresas da construção civil, que comumente utilizam Sociedades de Propósito Específico (SPEs) em cada empreendimento, essa inovação pode representar custos adicionais e até mesmo um aumento inesperado da carga tributária.
As SPEs são instrumentos usuais da construção civil. Criadas para viabilizar e compartimentar riscos de cada obra, elas se tornaram a espinha dorsal do setor. Até então, movimentações entre essas sociedades e a empresa controladora podiam ocorrer sem grandes repercussões fiscais. A LC 214/2025, contudo, prevê que operações entre partes relacionadas — inclusive cessões de direitos ou transferências de insumos — sejam reconhecidas para fins de incidência da CBS e do IBS.
A LC 214/2025, em seu artigo 5º, determina que operações entre partes relacionadas — ou seja, empresas do mesmo grupo econômico ou que tenham controle comum — devem ser tratadas como operações tributáveis para fins de incidência da CBS e do IBS. Isso vale especialmente quando a transação ocorre por valor inferior ao de mercado. Em termos simples: aquilo que antes poderia ser entendido apenas como uma movimentação interna, sem relevância tributária, agora passa a ser considerado um fato gerador, desde que haja fornecimento de bens, serviços ou direitos. A razão da regra é evitar planejamentos artificiais, nos quais empresas do mesmo grupo poderiam transferir insumos ou serviços entre si por valores simbólicos ou muito abaixo do mercado, reduzindo a base de cálculo e, portanto, o tributo devido.
Valor de mercado em operações intragrupo
O problema é que, na prática, nem sempre é fácil definir o que seria o “valor de mercado” em operações intragrupo. Em setores como a construção civil, nos quais as SPEs compartilham insumos, mão de obra ou etapas de execução de obras, os preços praticados podem variar bastante conforme contratos, prazos e especificidades técnicas, gerando margem para dúvidas e controvérsias fiscais.
Um exemplo bastante comum envolve a transferência de insumos entre SPEs: imagine uma construtora que adquire cimento por meio de uma sociedade criada para determinado empreendimento e, diante da necessidade, transfere parte desse material para outra SPE do mesmo grupo. O que antes era registrado apenas como movimentação interna, sem efeito tributário, agora pode ser tratado como fornecimento sujeito ao IBS e à CBS. Situação semelhante ocorre quando profissionais contratados por uma SPE prestam apoio técnico a outra obra vinculada ao mesmo grupo, configurando prestação de serviços intragrupo com potencial incidência.
Princípio da neutralidade comprometido
A Constituição, em sua redação dada pela EC 132/2023, consagrou os princípios da simplicidade, da neutralidade e da transparência como diretrizes da tributação do consumo (artigo 145, §3º, CF). Em tese, o novo sistema busca evitar distorções e impedir a tributação em cascata. Porém, no caso das SPEs, o que se observa é um risco inverso: operações internas podem gerar fatos tributáveis sem que haja efetivo valor agregado, comprometendo o ideal de neutralidade.
O princípio da neutralidade, considerado a espinha dorsal do novo modelo, significa que a tributação não deve interferir nas escolhas econômicas das empresas. A carga tributária deveria incidir apenas sobre o valor agregado em cada etapa, sem induzir ou desestimular determinadas formas de organização empresarial. Em outras palavras, uma companhia deveria poder escolher entre centralizar suas atividades em uma única pessoa jurídica ou distribuí-las em várias SPEs sem que isso resultasse em maior ou menor imposto a pagar.
A Constituição prometeu neutralidade ao determinar que a forma de organização empresarial não deveria afetar a carga tributária. Mas a LC 214 trouxe a tributação entre partes relacionadas, o que cria um paradoxo para empresas, por exemplo, da construção civil: operações entre incorporadoras e SPEs podem ser tributadas mesmo sem gerar valor agregado real. Assim, um modelo de governança saudável, pensado para segregar riscos e viabilizar financiamentos, pode acabar resultando em aumento de custos tributários.
Risco de abrir espaço para contencioso
Esse paradoxo decorre do descompasso entre a teoria e a prática. A Constituição estabeleceu a neutralidade como objetivo, mas a forma como a LC 214/2025 regulou operações intragrupo cria cenários de incidência em que não há acréscimo de riqueza. Assim, modelos de governança adotados por razões legítimas — como segurança patrimonial, financiamento e segregação de riscos — podem se transformar em passivos fiscais. Em última análise, a tributação entre partes relacionadas desloca a neutralidade de um princípio assegurado pela Constituição para um campo de incerteza interpretativa, abrindo espaço para contenciosos e para a própria perda de racionalidade do sistema.
Parte da doutrina levantou esses dilemas. Hugo de Brito Machado Segundo alerta que a lei, ao prever regimes diferenciados e regras específicas para operações intragrupo, abre espaço para disputas interpretativas que podem comprometer a neutralidade prometida. Já Leandro Paulsen destaca que a efetividade desse princípio dependerá de como o Comitê Gestor do IBS e a Receita Federal conseguirão uniformizar a aplicação das normas, evitando divergências e garantindo segurança jurídica.
Diante desse cenário, uma medida preventiva que pode contribuir para reduzir riscos é a adoção de uma política intercompany elaborada com suporte jurídico especializado. Esse instrumento, quando bem estruturado por profissionais da área tributária, não elimina a incidência prevista em lei, mas serve para documentar critérios de alocação de custos, metodologias de precificação e parâmetros de mercado utilizados em transações entre empresas do mesmo grupo. Dessa forma, fornece ao contribuinte elementos probatórios que demonstram boa-fé e consistência na condução das operações, diminuindo a margem para interpretações fiscais mais gravosas.
Além disso, a política intercompany pode funcionar como uma ferramenta de governança tributária: mapeia os fluxos internos, padroniza contratos, define critérios de “valor de mercado” e cria mecanismos de monitoramento do recolhimento efetivo do IBS e da CBS. Embora não impeça a incidência, pode mitigar a exposição a litígios e autuações, oferecendo maior previsibilidade ao grupo econômico e permitindo ajustes tempestivos na forma de organizar suas SPEs.
Reforma cria distorções e custos adicionais
A reforma tributária nasceu com a promessa de simplificação, mas, no caso das operações intragrupo, ela revela uma face paradoxal: em vez de neutralidade, pode gerar distorções e custos adicionais para empresas que utilizam SPEs como instrumento de governança. A tributação entre partes relacionadas coloca em xeque um modelo consolidado no setor da construção civil e exige um olhar criterioso sobre cada contrato, cada cessão de direito e cada fluxo econômico interno.
Mais do que nunca, compreender os limites do novo sistema tornou-se essencial para evitar surpresas. O debate sobre a neutralidade não é apenas acadêmico: ele se reflete diretamente no caixa das empresas e na forma como os grupos organizam seus negócios. A atenção preventiva e o acompanhamento técnico qualificado são, portanto, indispensáveis nesse momento de transição. A questão que permanece é se o novo sistema conseguirá, de fato, cumprir a promessa constitucional de neutralidade ou se acabará impondo ao contribuinte uma nova rodada de complexidade e insegurança.
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Fonte: Conjur