Notícia - Doenças autoimunes como doenças do trabalho
Área: Pessoal Publicado em 13/08/2025Fonte: Jornal Valor Econômico
Nesse novo cenário, a melhor estratégia é a prevenção, que exige conhecimento técnico, boa-fé na gestão das relações de trabalho e respeito à complexidade da vida laboral contemporânea.
A Justiça do Trabalho tem demonstrado, nos últimos anos, uma tendência crescente a reconhecer determinadas doenças autoimunes como doenças do trabalho, mesmo sob a ótica da concausalidade. Essa evolução, embora ainda controversa, revela uma jurisprudência mais protetiva à saúde do trabalhador e impõe às empresas novas obrigações em termos de prevenção e gestão de riscos ocupacionais.
Doenças autoimunes como lúpus, artrite reumatoide, psoríase e alopécia são tradicionalmente consideradas de etiologia multifatorial, com forte componente genético e ambiental. Ocorre que, mesmo quando essas doenças não são causadas diretamente pelas atividades laborais, a Justiça do Trabalho tem admitido que o ambiente de trabalho, por vezes, atua como fator de agravamento ou desencadeador de sua evolução. Essa é a base da tese do nexo concausal, prevista no artigo 20, II da Lei nº 8.213/91, e que vem sendo aplicada com mais frequência em decisões recentes.
Um julgado do Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo (TRT-SP) reconheceu a concausa entre atividades repetitivas de uma ajudante geral e o agravamento de artrite reumatoide. A empresa foi condenada a pagar pensão mensal de 40% do último salário, indenização por danos morais de R$ 30 mil, manter o plano de saúde após o desligamento e reembolsar despesas médicas. O laudo pericial foi enfático ao apontar os movimentos repetitivos como agravantes da doença.
Outro caso emblemático envolveu alopécia areata autoimune, associada ao estresse ocupacional. A 3ª Turma do TRT-SP concluiu, com base em laudo e documentação médica, que a pressão por metas e a carga emocional no trabalho atuaram como fator desencadeante da doença. A empresa foi condenada a pagar R$ 35 mil por danos morais.
Também a psoríase foi analisada pela Justiça, em decisão do TRT-MG. Nesse caso, a doença e um quadro de depressão foram agravados por ambiente tóxico, com assédio moral e apelidos pejorativos. O tribunal reconheceu o nexo concausal e concedeu indenização por danos morais.
Ocorre, entretanto, que o reconhecimento da responsabilidade do empregador nesses casos não é automático. É imprescindível a demonstração de que o ambiente de trabalho contribuiu, de forma direta ou indireta, para a manifestação ou agravamento da enfermidade. Essa avaliação é feita a partir da prova pericial, que analisa a existência de exposição a agentes físicos, químicos ou biológicos, bem como fatores psicossociais e organizacionais.
Em casos em que essa comprovação não se verifica, a responsabilidade da empresa é afastada. Foi o que decidiu o TRT-PE em julgamento envolvendo trabalhador com lúpus diagnosticado na infância. O perito atestou que as atividades desenvolvidas na função de almoxarife não implicavam exposição a agentes de risco capazes de agravar o quadro clínico. Por esse motivo, a demanda por indenização foi julgada improcedente.
Para as empresas, esta tendência da jurisprudência representa um risco jurídico relevante. Não se trata apenas de responsabilidade por acidentes típicos ou doenças previstas nos anexos da Norma Regulamentadora nº 15 (NR-15), mas da necessidade de uma atuação preventiva mais ampla, voltada à proteção da saúde integral do trabalhador. Isso inclui a identificação precoce de sintomas, a adaptação de postos de trabalho, o monitoramento de afastamentos e o cumprimento rigoroso das normas de saúde e segurança.
É recomendável que os empregadores implementem programas de saúde ocupacional com foco não apenas em riscos físicos e químicos, mas também em fatores psicossociais. Essa discussão se intensifica à luz da nova redação da NR-1, que passou a vigorar com importantes mudanças. A nova NR-1, ao estabelecer o Gerenciamento de Riscos Ocupacionais (GRO) e o Programa de Gerenciamento de Riscos (PGR), atribui às empresas o dever de identificar, avaliar e controlar os riscos ocupacionais, inclusive aqueles relacionados à saúde mental e a doenças não transmissíveis. Essa abordagem mais ampla e sistêmica exige que os empregadores adotem uma visão integrada da saúde do trabalhador, incluindo fatores ergonômicos e psicossociais. Com isso, doenças autoimunes - frequentemente agravadas por estresse crônico, sobrecarga de trabalho e condições ambientais - passam a estar, ainda que indiretamente, no radar da gestão de riscos.
A adequação dos ambientes de trabalho, a capacitação de líderes e gestores para o acolhimento de empregados adoecidos e a gestão eficiente do retorno ao trabalho após afastamentos são medidas estratégicas que podem mitigar os riscos de condenações judiciais e melhorar o ambiente corporativo. É fundamental, ainda, que as empresas realizem uma revisão das práticas tradicionais de gestão de saúde ocupacional, à luz de uma jurisprudência cada vez mais sensível à dignidade da pessoa humana e à proteção da integridade física e psíquica do trabalhador. As decisões analisadas indicam que o Judiciário não tem se limitado à origem biológica das doenças, mas considera também o papel das condições laborais na aceleração, agravamento ou eclosão dos sintomas.
A nova NR-1 intensifica a exigência de prevenção, ao reforçar o dever de atenção às vulnerabilidades individuais. Nesse novo cenário, a melhor estratégia é a prevenção - que exige conhecimento técnico, boa-fé na gestão das relações de trabalho e respeito à complexidade da vida laboral contemporânea.