São Paulo reduz ITCMD enquanto a Receita tributa expectativas

Área: Fiscal Publicado em 08/08/2025

São Paulo reduz ITCMD enquanto a Receita tributa expectativas

No meio da barulhenta tempestade tributária que se instaurou no Brasil desde a promulgação da Emenda Constitucional (EC) nº 132/2023, um fenômeno raro surgiu no horizonte jurídico-fiscal de São Paulo: o Estado mais rico da federação propôs uma efetiva redução de carga tributária. Não se trata de alívio retórico, nem de desoneração fictícia. Trata-se de uma mudança real, progressiva e, sobretudo, inteligente, do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD). Sim, é isso mesmo: São Paulo quer cobrar menos. E faz isso com base em princípios constitucionais e razoabilidade fiscal.

A proposta paulista, formalizada no Projeto de Lei (PL) nº 409/2025, abandona a fórmula da alíquota única de 4% e propõe um sistema progressivo, escalonado de acordo com o valor da herança ou doação. O novo modelo prevê alíquotas que vão de 1% a 4%, com faixas generosas de isenção parcial. Até 10.000 UFESPs - algo em torno de R$ 370 mil - o contribuinte pagará apenas 1%. Entre 10.001 e 85.000 UFESPs (cerca de R$ 3,1 milhões), aplica-se a alíquota de 2%. Na faixa intermediária seguinte, de até R$ 10,3 milhões, o imposto sobe para 3%. Só acima disso atinge os mesmos 4% já vigentes. Resultado? Uma redução da alíquota média efetiva para a esmagadora maioria da população contribuinte, especialmente para os patrimônios familiares mais comuns. Há justiça fiscal e há racionalidade.

Esse movimento torna-se ainda mais notável quando lembramos que, em 2024, tramitava no mesmo Estado o PL º 7/2024, um projeto de viés oposicionista que propunha elevar o ITCMD para até 8%, mirando no topo da faixa autorizada pela Resolução nº 9/1992 do Senado Federal. Um projeto que confundia progressividade com confisco. A atual proposta, do PL nº 409/2025, não apenas refuta esse maximalismo fiscal como o faz com elegância: protege os menos abastados, respeita a proporcionalidade e corrige distorções históricas que transformavam o ITCMD num pesadelo burocrático para qualquer família em processo de sucessão.

Enquanto São Paulo ensaia um balé fiscal com delicadeza e métrica, a Receita Federal escolhe dançar um frevo caótico sobre as expectativas jurídicas do contribuinte brasileiro. A Solução de Consulta Cosit nº 75/2025, publicada no fim de abril, lança luz sobre o tratamento dos trusts estrangeiros à luz da Lei nº 14.754/2023. A Receita não apenas reafirma a transparência fiscal como elemento central da nova legislação, como avança para definir que beneficiários nomeados em trusts irrevogáveis são, desde já, titulares do patrimônio - mesmo que sob cláusulas suspensivas e sem qualquer recebimento efetivo.

O entendimento da Receita ignora distinções essenciais no direito comparado. Em países de common law, como Reino Unido e Estados Unidos, trusts são arranjos jurídicos com regras muito claras de separação patrimonial: o patrimônio confiado ao trustee pertence a uma entidade fiduciária distinta, e os beneficiários só têm acesso ao patrimônio se e quando ocorrerem os eventos previstos no trust deed.

No Brasil, a Receita decidiu inverter a lógica. Segundo a Cosit, pouco importa se o trust foi instituído por uma holding estrangeira, se os recursos vieram de uma empresa offshore ou se o beneficiário sequer pode acessar os bens enquanto vivo o instituidor. A mera menção do nome do beneficiário brasileiro em um trust irrevogável e discricionário é suficiente para caracterizar disponibilidade jurídica e econômica. Pouco importa se a condição suspensiva é um “evento futuro e incerto”, como diria o Código Civil. A Receita prefere a certeza da arrecadação ao rigor da técnica.

Esse entendimento não é apenas equivocado: ele é perigoso. Cria um precedente de tributação de bens inexistentes. Viola o artigo 43 do Código Tributário Nacional, que exige acréscimo patrimonial para que haja fato gerador do Imposto de Renda. Afronta também o artigo 153, inciso III, da Constituição, ao transformar expectativas em renda e planos futuros em obrigações tributárias presentes. A consequência? Insegurança jurídica generalizada, desalento entre planejadores patrimoniais e um empurrão simbólico a milhares de brasileiros para fora do país - ou ao menos para fora da legalidade.

A contradição entre as duas esferas - estadual e federal - não é apenas teórica. Ela afeta, de maneira visceral, o planejamento patrimonial de famílias brasileiras de alta renda. De um lado, São Paulo oferece um ambiente mais previsível e racional para a sucessão de bens, permitindo a organização do patrimônio familiar com base em faixas isentas, alíquotas suaves e respeito à proporcionalidade. Do outro, a Receita Federal coloca todos esses esforços sob risco ao tributar estruturas internacionais legítimas como se fossem artifícios ilícitos. A assimetria gera distorções: o mesmo patrimônio que, no plano estadual, encontra alívio tributário, pode ser aniquilado no plano federal por uma interpretação criativa da Receita.

O que São Paulo nos ensina, é que é possível compatibilizar arrecadação com racionalidade. Que é possível respeitar os direitos do contribuinte sem abrir mão do controle. E que é, sim, possível aplicar a Constituição de forma técnica, sem transformá-la em slogan. Já a Receita, com sua sanha pelo controle total, ensina exatamente o oposto: que o excesso de poder interpretativo pode corroer os fundamentos do sistema jurídico, que a tributação sem riqueza é um abuso disfarçado, e que o Brasil ainda está muito longe de alcançar a maturidade institucional necessária para lidar com estruturas globais com a devida sofisticação.

Fonte: Valor Econômico