Papel dual da União na federação e a reforma tributária (parte 1)
Área: Fiscal Publicado em 03/06/2025Papel dual da União na federação e a reforma tributária (parte 1)
Na federação, os estados federados mantêm a autonomia política, porém renunciam à soberania em favor de um Estado único, formado pela união de todos os estados constituintes. Além disso, aceitam a criação de uma instância de poder central, que é sobreposta [1] aos governos dos estados constituintes e é destinada a decidir questões de interesse de toda a União.
Dessa forma, a principal característica de uma federação é ter um governo central, que tenha poder político para coordenar um grupo de estados [2] unidos que nele depositam suas esperanças de desenvolvimento político, social e econômico. Em razão desse arranjo, passam a existir três esferas de poder político: 1) internamente no âmbito de cada estado membro e de cada município; 2) nacionalmente a partir do governo central, que coordenará o desenvolvimento conjunto dos estados membros; 3) especificamente no âmbito da União, que cuidará de seus próprios negócios e interesses, como superente da federação [3].
A federação é um regime que depende do delicado equilíbrio entre a autonomia dos entes federados e o poder da União, que existe justamente para manter todos os entes unidos, mas ao mesmo tempo politicamente autônomos. O ponto nevrálgico da questão federativa está na divisão de poderes entre o governo central e os entes federados.
Quando a União assume mais competências legislativas do que ela precisa para ser a regente da federação, então ela passa a cumprir um papel dual: além de regente, passa a ser também ente da federação concorrente dos estados e dos municípios. A União começa a jogar de acordo com o lema “cada um por si e todos pela nação”, de maneira que o governo central passa a disputar poder com os estados [4]. Como consequência, a União, que deveria representar o interesse de todos os estados e municípios, contribuindo para o desenvolvimento deles, passa a ser um superente que com eles disputa.
A resolução desse complexo problema constitucional somente pode ser alcançada se decifrado o que Amaro Cavalcanti e Rui Barbosa deixaram como legado inconcluso: o enigma do “rei duplo” — compreender quando a União deve empunhar a coroa de coordenadora da federação e quando deve disputar, como igual, a partida federativa com estados e municípios.
Divisão de competências e o espaço de autonomia política
No Brasil, a Constituição faz a divisão de competências da seguinte forma: enuncia expressamente os poderes da União, deixando para os estados, residualmente, tudo o mais. Para os municípios, a Constituição reserva as matérias residuais de interesse local [5]. É uma técnica inteligente, pois permite isolar as competências da União, deixando-as claras.
Em relação à competência administrativa ou material, a divisão é feita da seguinte maneira:
a) Competência exclusiva da União (artigo 21 da Constituição). Nesses casos, somente a União pode formular e executar políticas públicas, além de ofertar determinados serviços e exercer poderes de fiscalização. São exemplos importantes: (1) emitir moeda; (2) administrar as reservas cambiais do país e fiscalizar as operações de natureza financeira.
b) Competência comum de todos os entes: União, estados e municípios (artigo 23 da Constituição). Nesses casos, a União pode funcionar apenas como regente, deixando espaço para que estados e municípios atendam suas peculiaridades.
Quanto à competência legislativa, ela é um pouco mais complexa [6]. A Constituição repete as mesmas classes definidas para a competência administrativa: exclusiva e comum. Porém, acrescenta mais três. Assim, com base nas lições de José Afonso da Silva, adota-se aqui a seguinte classificação:
a) Competência exclusiva: somente a União pode exercer a competência definida pela constituição.
b) Competência comum: a União, os estados e municípios podem legislar em pé de igualdade sobre o mesmo tema.
c) Competência privativa: tipo especial de competência exclusiva onde a União pode delegar o poder de legislar para os estados e municípios, mediante lei complementar para questões pontuais. Por exemplo, legislar sobre Direito Comercial, Direito Civil e Direito Penal [7].
d) Competência concorrente: tipo especial de competência comum onde a União tem prioridade para fixar normas gerais, enquanto os estados e os municípios podem estabelecer normas específicas.
e) Competência suplementar: os estados podem legislar para desdobrar princípios e regras gerais estabelecidos pela União, bem como suplementar as regras gerais em caso de omissão da União.
É nos espaços dados pela competência material comum e pela competência legislativa comum e suas subespécies que os entes federados realizam sua autonomia política. Fora desses espaços, o poder se concentra nas mãos da União como gestora da federação. É essencial diferenciar a competência da União como gestora e como superente federado. Na primeira condição, ela atua em situação de sobreposição [8] aos estados e municípios, uma vez que seu propósito é de interesse de todos.
O enigma do rei duplo se revela justamente nessa cartografia constitucional das competências: quando a União veste a coroa de coordenadora da federação, ela reina sobre um tabuleiro onde todos os entes jogam segundo suas regras, mas quando assume o papel de superente federado, ela desce ao tabuleiro e disputa as mesmas casas que estados e municípios. A dificuldade está em saber qual coroa ela está usando em cada movimento, pois de uma mesma jogada pode decorrer tanto a harmonia federativa quanto a usurpação da autonomia local. Decifrar esse enigma é essencial para compreender se determinada competência fortalece ou enfraquece o pacto federativo.
Dessa forma, qualificar uma competência como típica da função de governo central, ou que desborde dela e se apresente como própria de ente federado, nem sempre é tarefa fácil [9]. Essa zona cinzenta é motivo de importantes conflitos políticos. O maior exemplo de competência material e legislativa entregue à União como superente são aquelas alusivas à previdência social, saúde, educação, assistência social e proteção ao trabalhador. Assumir a responsabilidade pelo financiamento e gestão dessas políticas é opção política [10] que, uma vez exercida, torna a União um superente da federação.
Foi justamente para financiar essa ambiciosa agenda de superente que a União criou os chamados “tributos sobre a receita bruta” (Finsocial, PIS e Cofins) — uma engenhosa solução que lhe permitiu, de forma camuflada, invadir as bases tributárias tradicionalmente reservadas aos estados e municípios. Escondendo-se por trás de categorias contábeis como “receita bruta” e “faturamento”, a União conseguiu tributar, na prática, as mesmas operações comerciais e de prestação de serviços que constituem o núcleo da competência tributária estadual e municipal, criando décadas de sobreposição e conflito no sistema tributário nacional.
Papel dual da união em matéria tributária
No campo tributário, o papel dual da União reflete sua dupla função: reger todo o sistema tributário nacional e atuar como instituidora e arrecadadora dos seus próprios tributos. Nessa segunda condição, age como superente federado, concorrente dos estados e municípios. Esse espaço em que se movimenta a União, enquanto superente, segundo nossa visão, é exatamente aquele mencionado por Kelsen e acima referido como sendo a ordem jurídica parcial, mas aplicada a toda federação.
Função de regente da federação em matéria tributária:
Em matéria tributária, na condição de regente, a Constituição fixa algumas competências materiais exclusivas, como a formulação de políticas públicas para o adequado tratamento fiscal das cooperativas e das pequenas e microempresas (artigo 146, III, “c” e “d”).
As principais competências legislativas exclusivas [11] da União como regente estão no artigo 146, I e II, da Constituição: I – dispor sobre conflitos de competência, em matéria tributária, entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os municípios; II – regular as limitações constitucionais ao poder de tributar.
Quanto às competências legislativas comuns, estas são do tipo concorrente e estão previstas no artigo 146, III: estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre: a) definição de tributos e suas espécies; b) obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários.
Roque Carrazza adverte [12] que essa competência legislativa da União de pouco serve na prática, uma vez que a própria Constituição a teria realizado praticamente por inteiro, não deixando espaço para a atuação da União enquanto regente. A reflexão é importante com relação à competência exclusiva e parte da competência comum, mas contém algum exagero quanto às hipóteses do artigo 146, III, “b”.
Função de superente federado:
Na qualidade de superente da federação, a União possui competências materiais exclusivas relacionadas à instituição dos tributos a si atribuídos: artigo 147 (tributos do DF), artigo 148 (empréstimo compulsório), artigo 149 (contribuições sociais), artigo 153 (impostos), artigo 154 (competência residual) e artigo 195 (contribuições sociais para financiamento da seguridade social).
Nessa condição de superente, a União concorre com estados e municípios pela busca de receitas. Os principais conflitos ocorrem no âmbito das contribuições sociais, pois as bases tributáveis eleitas pela Constituição são as mesmas fixadas para o principal imposto estadual (ICMS) e para o principal imposto municipal (ISS). De forma escamoteada, a Constituição fala em faturamento, receita bruta e valor da operação, grandezas que, a rigor, estão no núcleo dessas atividades empresariais e são apenas outros nomes para operações de mercancia e prestação de serviços [13].
Espaço para a autonomia dos estados e municípios
O espaço para a autonomia dos estados e municípios está nos temas reservados para a competência comum, material e legislativa. Por sua vez, quando a União atua no exercício de sua competência exclusiva como superente, material e legislativa, ela não atua com superposição aos estados e municípios. Estados e municípios, como estão em paralelo com a União nessa hipótese, também possuem competência exclusiva, material e legislativa.
Quanto às hipóteses de competência material comum em matéria tributária, cabe aos estados e municípios exercerem sua autonomia através da gestão de sua estrutura administrativa [14]. Por conta desse espaço de competência comum legislativa, cada ente da federação possui extensa legislação específica sobre seus próprios tributos.
Esse espaço de autonomia provoca uma inflação legislativa de grandes proporções que atravanca o país. O resultado é um alto custo de conformidade e uma explosão de questionamentos administrativos e demandas judiciais. Em matéria tributária, o espaço de autonomia deve se restringir à divisão equânime de receita [15].
Como sempre há, na maioria dos casos, pelo menos duas interpretações possíveis para a legislação, isso significa que, a rigor, nunca há apenas uma lei, mas várias. Em alguns casos, demora 30 anos para que a interpretação seja uniformizada, criando um segundo tipo de imposto não escrito no Brasil, que é o imposto hermenêutico [16].
Os maiores exemplos desse fenômeno são justamente os “tributos sobre a receita bruta”: a discussão sobre a exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS/Cofins — conhecida como “tese do século” — gerou sozinha 73 teses filhotes no Supremo Tribunal Federal, cada uma com seus próprios desdobramentos interpretativos e anos de incerteza jurídica. Não é demais lembrar que, no Brasil, além do imposto hermenêutico, existe também o imposto inflacionário, fenômeno que analisamos detalhadamente aqui.
Como diriam Amaro Cavalcanti e Oswaldo Trigueiro, não há autonomia de estados e municípios que justifique prejuízos à nação. Pela “lei da participação”, os estados “tomam parte no processo de elaboração da vontade política válida para toda a organização federal, intervêm com voz ativa nas deliberações de conjunto, contribuem para formar as peças do aparelho institucional da federação” [17].
Conclusão
A análise do papel dual da União na federação brasileira revela a necessidade de um equilíbrio constante entre coordenação e autonomia. A União deve ter poderes suficientes para garantir a unidade e a coesão nacional, enquanto respeita a autonomia dos estados e municípios.
No fim, a sustentabilidade da federação depende da capacidade de todos os entes federativos trabalharem juntos, respeitando suas competências e colaborando para o desenvolvimento do país. Como adverte Paulo Bonavides: “A superioridade do Estado federal sobre os Estados federados fica patente naqueles preceitos da Constituição federal que ordinariamente impõem limites aos ordenamentos políticos dos Estados-membros” [18].
O enigma do rei duplo se resolve, portanto, através de um critério simples, mas rigoroso: sempre que a União atuar para garantir a coesão, a unidade e o desenvolvimento conjunto da federação — exercendo competências que nenhum ente federado isoladamente conseguiria desempenhar —, ela veste legitimamente a coroa de coordenadora. Mas quando buscar vantagens próprias ou competir diretamente com estados e municípios por recursos ou poder, estará abusando de sua posição e fragmentando o pacto federativo.
A reforma tributária, ao criar o Comitê Gestor do IBS, coloca esse dilema no centro do debate contemporâneo — questão que exploraremos detalhadamente no último texto desta trilogia, quando analisaremos se esse novo órgão representa a evolução natural do federalismo brasileiro ou uma ruptura silenciosa em nosso arranjo constitucional.
[1]: TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América: leis e costumes. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
[2]: No caso do Brasil, a federação também é uma união de municípios.
[3]: Kelsen, em sua Teoria Geral do Direito e do Estado, faz essa diferença. Ele diz que, em uma federação, há três níveis de ordens jurídicas: 1) o nível local, formado pelas normas dos estados federados; 2) o nível central total, formado pelas normas nacionais aplicáveis a toda federação; 3) o nível central parcial, formado pelas normas federais, aplicável a toda federação. (Teoria do Direito e do Estado. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 452.)
[4]: A prova dessa afirmação está na circunstância de que, na federação, há três ordens jurídicas que se entrelaçam: (i) a ordem nacional total, quando a União legisla e age como coordenadora da federação, (ii) a ordem nacional parcial, quando a União legisla e age como superente federado e (iii) a ordem estadual.
[5]: SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 479.
[6]: SILVA, José Afonso. Ob. cit., p. 479.
[7]: [nota sem conteúdo no original]
[8]: CAVALCANTI, Amaro. Regimen Federativo: a republica brazileira. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1900.
[9]: José Afonso da Silva registra essa dificuldade em seu Curso de Direito Constitucional, p. 478, com a autoridade de quem foi o autor da proposta para a estrutura de repartição de competências.
[10]: Decorre da opção política do Brasil em organizar-se como um “estado do bem-estar social”.
[11]: José Souto Maior Borges adverte que, para os casos de competência legislativa tributária, o veículo legislativo deve ser sempre a lei complementar, pois não se trata de norma da ordem jurídica da União, mas de toda a nação. (Lei Complementar tributária. São Paulo, Revista dos Tribunais e EDUC, 1975, p. 94).
[12]: CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de Direito Constitucional Tributário. São Paulo: Malheiros, 2024.
[13]: Não é por outra razão que ela sempre, de forma camuflada, erodiu a base da tributação dos estados. Isso trouxe caos ao sistema, desde a LC nº 7/1970, que criou o PIS, até a EC n.º 132/2023, que criou a CBS.
[14]: A inscrição em dívida ativa e a cobrança judicial são entendidas como matéria processual, ficando de fora porque tratam de temas de competência exclusiva da União.
[15]: “Sistema tributário e discriminação de rendas são, porém, conceitos inconfundíveis.” (SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 720).
[16]: No Brasil, fala-se em imposto inflacionário como espécie tributária fora do sistema formal, daí a ideia de agora também se falar do imposto hermenêutico. É um chiste, mas tem significado para reflexão.
[17]: Paulo Bonavides. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 195.
[18]: Paulo Bonavides. Ciência Política. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 198.
Fonte: Consultor Jurídico