Opinião - Tropicalização da jornada de trabalho reduzida

Área: Pessoal Publicado em 14/03/2023 | Atualizado em 23/10/2023 Imagem coluna Foto: Divulgação
Fonte: Jornal Valor Econômico

Na teoria, não há impedimento para a adoção da jornada de trabalho de quatro dias por semana no Brasil

A jornada de trabalho de quatro dias vem se tornando uma realidade após experiências bem-sucedidas na Islândia, Nova Zelândia, Bélgica, Emirados Árabes, Reino Unido, Dinamarca, Escócia, Japão e Espanha. A alteração permite mais equilíbrio entre trabalho e vida pessoal, e surgiu como uma alternativa em um período pós-pandemia, em que a saúde mental e doenças como a Síndrome de Burnout entraram no radar das empresas. Ela também está alinhada às diversas mudanças trabalhistas que buscam assegurar flexibilização do trabalho e minimizar a tradicional vinculação feita entre horas trabalhadas, produtividade e resultados - ao contrário do que se pode imaginar, a redução de jornada pode tornar o trabalho mais eficiente.

Na Islândia, por exemplo, uma série de testes conduzidos pela Câmara Municipal de Reykjavik e pelo governo nacional constatou que as jornadas de quatro dias diminuíram o estresse dos trabalhadores de forma geral, enquanto na Nova Zelândia os funcionários da Perpetual Guardian, da cidade Auckland, demonstraram níveis de satisfação mais altos com o trabalho. São fatores que podem resultar em melhorias na taxa de retenção de talentos e em um menor índice de doenças ocupacionais a longo prazo - mas as vantagens não param aí.

Na teoria, não há impedimento para a adoção da jornada de trabalho de quatro dias por semana no Brasil
Empresas também têm observado benefícios diretos com a mudança na jornada clássica, como redução no índice de faltas, aumento de produtividade - a Microsoft do Japão registrou 40% de crescimento no índice -, queda das despesas operacionais e melhoria nos índices de impacto ambiental corporativo, como no caso da diminuição de cerca de 20% na emissão de carbono, segundo pesquisa conduzida no Reino Unido pela 4DayWeek.

Porém, resta a pergunta de um milhão de dólares: será que poderíamos importar o modelo para o Brasil? E se sim, quais seriam os impactos sob a perspectiva legal?

Na teoria, não há impedimento para adoção da jornada de trabalho de quatro dias por semana, pois a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) prevê apenas limites relacionados a jornadas máximas de trabalho, e não mínimas. Na maioria dos contratos de trabalho, bastaria que as jornadas não ultrapassarem 10 horas diárias ou 44 horas semanais.

Desse modo, caso um empregado seja contratado para trabalhar por 40 horas semanais, a jornada de segunda a sexta poderia ser modificada para se tornar de segunda a quinta, por exemplo, mas com 10 horas de expediente diário. Nesse caso, como não há alteração na jornada semanal e mensal, o trabalhador sequer precisaria de um aditamento contratual. Ele só não poderia prestar horas extras, pois ultrapassaria o limite diário.

Outra possibilidade seria a redução da jornada de trabalho semanal para 32 horas semanais. Desse modo, os empregados trabalhariam oito horas por dia, em quatro dias da semana, podendo ainda realizar duas horas extras por dia, se necessário.

As empresas podem ser criativas para escolher a melhor alternativa, desde que respeitem os devidos parâmetros legais. A exemplo, a mudança do regime de trabalho para 4x3 não altera o direito de 30 dias de férias anuais. Tampouco impacta na garantia de descanso aos domingos, aplicável para grande parte das empresas. Por outro lado, se o empregado trabalhar apenas quatro dias da semana, a empresa pode ajustar benefícios como o vale-transporte, vale-refeição ou vale-alimentação de acordo com os dias de serviços prestados.

Quanto a remuneração, o aumento da produtividade dos empregados identificado internacionalmente acena para a possibilidade de uma redução da jornada sem diminuir salários. Entretanto, ainda assim há hipóteses legais - em situações excepcionais - que permitem redução salarial proporcional à redução da jornada, desde que seja negociada com o sindicato responsável.

Se do ponto de vista legal a redução de jornada é viável, na prática, é possível que o sonho vire pesadelo. Isso porque, para grande parte da população brasileira, o trabalho em apenas quatro dias na semana permitiria a realização simultânea de dois ou mais trabalhos, mesmo que informais. Em vez de mais tempo para descansar, a medida poderia resultar em sobrecarga e esgotamento físico e mental em troca de incremento de renda.

Também é preciso levar em conta que as boas experiências internacionais aconteceram, em sua maioria, em países com condições de desenvolvimento socioeconômico muito mais evoluídos, nos quais o maior tempo livre está diretamente ligado a mais felicidade e menos estresse. Em países com problemas estruturais como o Brasil, esse tempo extra pode não representar descanso ou bem-estar físico e emocional, fazendo com que trabalhar menos dias para uma empresa resulte em impactos para a saúde mental - dependendo, claro, do tipo de trabalho desenvolvido e de fatores pessoais de cada indivíduo.

Já sob a perspectiva das empresas, a medida requer muito um planejamento prévio de acordo com cada modelo de negócio, com realização de experiências-teste antes da adoção definitiva. Também se faz necessário treinar os gestores para implementação e acompanhamento do novo sistema, de modo que se preserve a qualidade do trabalho, já que o modelo confere mais liberdade para trabalhadores organizarem tarefas e, consequentemente, exige competências extras, como um melhor autogerenciamento.

Efetivamente, a mudança traz grande impacto para o dia a dia empresarial, e deve ser vista com cautela. Embora resultados benéficos sejam vistos internacionalmente, a tropicalização do modelo sem levar em conta as particularidades brasileiras pode, contraditoriamente, causar problemas na retenção ou bem-estar dos trabalhadores - justamente o contrário do que se almeja.

Priscila Novis Kirchhoff e Carolina Fay são, respectivamente, sócia e associada da área trabalhista de Trench Rossi Watanabe
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