O desafio das cooperativas na reforma tributária
Área: Contábil Publicado em 25/08/2025Ato cooperativo na reforma tributária: entenda os avanços, inconstitucionalidades e a questão do associado não-contribuinte.
A reforma tributária prometeu simplificação, isonomia e respeito às especificidades dos diversos setores da economia. Nesse cenário, o cooperativismo, setor historicamente negligenciado pelo sistema tributário brasileiro e alvo de intensos debates doutrinários e jurisprudenciais em razão da ausência de regulamentação adequada, foi enfim contemplado no novo modelo do IVA dual, com a previsão de um regime específico de tributação. No entanto, a redação da LC 214/25 traz, em seu art. 271, uma restrição que contraria o espírito do cooperativismo e ignora a proteção constitucional conferida ao ato cooperativo.
O cooperativismo é, por natureza, uma forma de organização econômica baseada na união de pessoas em torno de interesses comuns, sem intuito lucrativo.
Essa lógica foi expressamente reconhecida na Constituição Federal de 1988, que determina, em seus arts. 3º, I, e 174, § 2º, que a lei deve apoiar e estimular o cooperativismo. O art. 146, III, "c", por sua vez, determina que lei complementar deve estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária e, especialmente, sobre o "adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas".
Nesse contexto, o chamado "ato cooperativo", ou seja, a operação realizada entre cooperado e cooperativa no exercício das finalidades estatutárias, deveria ser tratado como juridicamente distinto de operações mercantis típicas.
Ocorre, no entanto, que o mencionado art. passou mais de 30 anos sem a regulamentação necessária, deixando os conceitos de "adequado", "tratamento tributário", "ato cooperativo" e "sociedades cooperativas" para debate e elucidação pela doutrina e pela jurisprudência.
Diante disso, diferentes entendimentos subsidiaram decisões sobre o tema, sendo que a mais correta, pelo que se entende, é que o ato cooperativo caracteriza um caso de não incidência tributária (e não de imunidade ou isenção), uma vez que representa "serviço desinteressado", destituído de caráter mercantil, como se observa na definição contida no parágrafo único do art. 79, da lei 5.764/1971.
O STJ já consolidou essa distinção no REsp 1.141.667/RS, ao reconhecer a não incidência de tributos sobre o ato cooperativo. O STF, por sua vez, ainda deve apreciar o tema com repercussão geral no RE 672.215 (Tema 536), mas o fato é que já se reconhece a existência de um regime jurídico próprio que se impõe sobre o sistema tributário, pendente apenas a definição de seus contornos.
Apesar disso, ainda há grande insegurança quando se trata da tributação do ato cooperativo, e o vácuo legislativo prolongado instaurou um verdadeiro estado de inconstitucionalidade. A simples concessão de isenções, ou mesmo de regimes diferenciados pontuais, não resolve o problema, uma vez que a própria natureza do ato cooperativo impede que ele sobre ele repouse a materialidade da hipótese de incidência tributária.
É nesta conjuntura, portanto, que a LC 214/25 assume a responsabilidade de regulamentar o ato cooperativo no que diz respeito aos tributos indiretos. O art. 271 da LC estabelece que as cooperativas poderão optar por regime específico em que as alíquotas do IBS e da CBS serão zeradas nas seguintes hipóteses:
I - o associado fornece bem ou serviço à cooperativa de que participa; e
II - a cooperativa fornece bem ou serviço a associado sujeito ao regime regular do IBS e da CBS.
Primeiramente, há que se observar que o dispositivo traz um regime que beneficia o ato cooperativo, mas que não aponta a não incidência, mantendo a inconstitucionalidade mencionada anteriormente. Além disso, a exclusão do benefício da alíquota zero nos casos em que o associado não for contribuinte do IVA fere o princípio da isonomia, ignora a essência do ato cooperativo e cria uma penalidade fiscal sem fundamento.
Muitas vezes, por força da própria legislação, o cooperado não conseguirá estar enquadrado no regime regular. É o caso, por exemplo, de pequenos produtores rurais, pessoas físicas ou jurídicas com movimentação limitada, ou mesmo optantes por regimes simplificados. Essa exclusão, portanto, não decorre de uma "escolha tributária", mas de uma impossibilidade prática ou legal.
Punir a cooperativa (e, por consequência, o cooperado) com a tributação de uma operação interna à organização, apenas porque o destinatário não é contribuinte do IVA, significa distorcer o conceito do ato cooperativo, que deve ser desonerado por definição, independentemente do regime tributário do cooperado.
Observa-se, no geral, que o modelo previsto pela LC 214/25 cria uma situação de extrema complexidade para as cooperativas e seus associados. No caso das cooperativas agrárias e agroindustriais, por exemplo, serão, ao todo, quatro perfis distintos de cooperados com implicações tributárias diferentes: produtor rural pessoa física contribuinte do IVA; produtor rural pessoa física não contribuinte do IVA; produtor pessoa jurídica contribuinte; e produtor pessoa jurídica não contribuinte.
Essa segmentação exige cadastros minuciosos, controle individualizado de operações e tributação diferenciada para operações que, na essência, são iguais. Mais grave ainda, o tratamento desigual de cada categoria, como se observa no caso mencionado do inciso II, do art. 271, desestabiliza as próprias bases do movimento cooperativista, fundado na solidariedade e na igualdade de condições.
Como explicar a um cooperado não contribuinte que o mesmo serviço que seu vizinho cooperado recebe será mais caro para ele, simplesmente porque sua condição tributária é distinta? Como se observa, a medida fere o princípio da capacidade contributiva, desestimula a formalização e compromete o papel da cooperativa como agente de organização econômica e inclusão produtiva.
Nota-se, portanto, que embora o reconhecimento do ato cooperativo no novo sistema tributário represente um avanço, já se vislumbram possíveis inconstitucionalidades em sua regulamentação. Além disso, surgem entraves operacionais relevantes no regime específico criado para as sociedades cooperativas.
Enfim, o regime, tal como desenhado, ainda exige cautela. Sua aplicação prática exigirá esforço de interpretação, ajustes normativos e atenção constante para que não se percam, na burocracia e na má técnica legislativa, os valores que o cooperativismo constitucionalmente carrega.
link: https://www.migalhas.com.br/depeso/438262/o-desafio-das-cooperativas-na-reforma-tributaria
Fonte: Migalhas.com