IBS-Importação: insuficiência do PLP 68 para dirimir conflitos de competência

Área: Fiscal Publicado em 19/09/2024

IBS-Importação: insuficiência do PLP 68 para dirimir conflitos de competência

Diante do contexto de complexidade normativa, elevados custos de conformidade e alta litigiosidade, é natural que um dos pilares da reforma tributária [1] tenha sido a simplificação. É inegável que esse propósito foi alcançado em alguma medida — o fato de transformar 27 legislações diferentes de ICMS, que comportavam variadas exceções, por si só, já confirma o mérito da EC 132.

Contudo, diante de tantos debates envolvendo temas e interesses variados, é natural que algumas previsões não tenham se beneficiado de toda a cautela necessária. Assim, mesmo considerando o PLP 68 [2], ainda é possível identificar definições que permitem interpretações divergentes, o que tende a ser um ingrediente de fomento à insegurança jurídica e ao contencioso, contrariando a simplificação almejada.

O presente artigo trata do conceito de “estabelecimento importador” e, por conseguinte, da definição do sujeito ativo do IBS-Importação [3]. Dentro da lógica da simplificação, é razoável esperar que a linguagem adotada pelo legislador seja suficientemente clara para evitar conflitos, sobretudo diante do conhecido histórico de guerra fiscal e sua nuance envolvendo operações de importação, a guerra dos portos. Contudo, não é o que se constata na atual redação do PLP 68, como demonstrado a seguir.

Cenário pré-reforma: CF/88, LC 87/96 e Tema 520 (STF)

Dado que o IBS substituirá o ICMS e ISS, cumpre observar que a disciplina constitucional ora vigente determina que o ICMS incide sobre a entrada de mercadoria importada, sendo devido ao estado onde estiver situado o domicílio ou o estabelecimento do destinatário da mercadoria [4], sem conceituá-lo.

Originalmente, a Lei Complementar nº 87/96 tratou esse destinatário como o local no qual ocorrer a entrada física do bem [5]. Embora seja um critério objetivo, não foi suficiente para afastar autuações contra importadores, tanto no contexto de importações diretas, quanto indiretas. Situações corriqueiras de ingresso do bem estrangeiro por um estado, com saída subsequente para outro, física ou ficta, geraram disputas sobre a titularidade do ICMS devido na importação.

A criticidade do contencioso sobre a matéria levou o plenário do STF a fixar a tese de Repercussão Geral nº 520: “o sujeito ativo da obrigação tributária de ICMS incidente sobre mercadoria importada é o Estado-membro no qual está domiciliado ou estabelecido o destinatário legal da operação que deu causa à circulação da mercadoria, com a transferência de domínio”.

O STF firmou essa tese no contexto do RE nº 665.134/MG e a fundamentação foi ali construída no sentido de compreender o destinatário da mercadoria como o seu destinatário jurídico, o que também permitiu reconhecer as operações de circulação simbólica como aptas a atrair a sujeição ativa do ICMS-Importação a determinado Estado.

 Naquela oportunidade, o STF declarou a inconstitucionalidade parcial do artigo 11, I, ‘d’ da LC 87/96. Nos termos do voto do ministro relator Edson Fachin, tal declaração visa a “afastar o entendimento de que o local da operação ou da prestação, para os efeitos da cobrança do imposto e definição do estabelecimento responsável pelo tributo, é apenas e necessariamente o da entrada física de importado”.

Nesse mesmo processo foi aberta questão de ordem, na qual se reiterou que “(…) a jurisprudência desta Corte entende ser o sujeito ativo do ICMS-importação o Estado-membro no qual estiver localizado o destinatário final da operação, logo é irrelevante o fato do desembaraço aduaneiro ocorrer na espacialidade de outro ente federativo”.

Ao concluir que o destinatário do texto constitucional corresponde ao destinatário jurídico ou final, com a declaração parcial de inconstitucionalidade do artigo 11, mitigou-se a prevalência do ingresso físico como critério para definição de competência. A partir dessa conclusão do STF, a definição de local da operação contida na lei complementar (entrada física) passou a ser uma possibilidade, mas não a única, para compreender o alcance da expressão constitucional estabelecimento destinatário.

Isso demonstra que a Lei Complementar nº 87/96 falhou em seu propósito de dirimir conflitos de competência, na medida em que não trouxe uma definição suficiente para que se identifique, com segurança, o sujeito ativo na hipótese de importação de mercadorias. Essa lacuna deixada pela lei complementar, somada a uma terminologia elástica prevista no texto constitucional (destinatário), possibilitou interpretações casuísticas e, portanto, resultou em insegurança jurídica.

Esse julgamento foi marcado, ainda, pela contradição entre os seus fundamentos e a sua conclusão[6]. Embora o acórdão tenha delineado a competência do ICMS-Importação conforme a modalidade de importação, bem como enfatizado o destinatário legal, ao trazer elementos do caso concreto, a conclusão distorce o conceito de destinatário jurídico ao se apegar, na prática, ao local da entrada física da mercadoria importada [7].

Vale lembrar que, no caso, o importador estava em São Paulo, tendo ali ocorrido o desembaraço aduaneiro. Na sequência, houve remessa para industrialização por encomenda para estabelecimento industrial localizado em Minas Gerais e, após, retorno ao estabelecimento paulista, no qual seria feita a comercialização. Se considerado o raciocínio desenvolvido na decisão, a conclusão lógica seria de que o ICMS-Importação seria devido a São Paulo, pois ali se encontrava a pessoa jurídica que deu causa à circulação da mercadoria (destinatário jurídico). Contudo, concluiu-se que Minas Gerais seria competente para exigir o imposto, pois foi no estabelecimento ali localizado que ingressaram os insumos importados para industrialização, tendo sido ali verificado o seu “destino final”.

Ao invés de previsibilidade, o julgamento do RE nº 665.134/MG gerou ainda mais incertezas, como se constata em interpretações arbitrárias perpetuadas pela Fazenda estadual, mesmo após a decisão do STF[8]. Essa experiência demonstra os indesejáveis desdobramentos quando falta clareza na linguagem adotada em lei complementar, no que tange à determinação da sujeição ativa. Resta avaliar se o PLP 68 aproveita esse histórico como lição aprendida ou se incorre no mesmo equívoco.

EC 132 e PLP 68: definições ainda imprecisas

A despeito do extenso conteúdo incorporado pela EC 132, naturalmente algumas previsões foram deixadas para disciplina de lei complementar, em observância ao artigo 146 da CF/88. É o que também se depreende do artigo 156-A, §5º, IV, segundo o qual a lei complementar disporá sobre critérios para definição do “destino da operação”.

Para a hipótese de importação de bens materiais, o PLP 68 define [9] que o local da operação corresponde ao local de entrega dos bens ao destinatário final, nos termos do artigo 11. Contudo, o artigo 68 não conceitua o que se deve entender por “entrega” e “destinatário final”. Assim, remete-se ao artigo 11 expressamente mencionado.

Em relação às operações com bem móvel material, o artigo 11, I, o vinculou ao “local da entrega ou disponibilização ao destinatário”. Como se observa, a despeito da referência feita pelo artigo 68 ao artigo 11, este último não revela esclarecimentos adicionais. Novamente menciona “entrega”, sem a definir; agrega um termo ainda mais aberto (“disponibilização”); e, ainda, não traz conceito próprio para “destinatário” (sendo que no artigo 11 não há a sua qualificação como “final”). Diante da insuficiência do artigo 11 para melhor compreender o alcance do artigo 68, volta-se ao artigo 3º do PLP 68, dedicado a diversas definições.

Não há no artigo 3º uma definição para “entrega”. O termo se apresenta como uma das situações de “fornecimento”, mas não há uma definição própria para essa palavra que é um dos elementos essenciais para a devida aplicação do artigo 68 [10]. Provavelmente, não se trata somente de uma disponibilidade física ou se teria adotado esse termo. Sendo algo a mais que o “ingresso físico” (como no passado cogitou a LC 87/96), qual seria o seu alcance? Não se identifica no PLP 68 uma diretriz que delimite a compreensão desse termo.

O outro elemento relevante para a aplicação do artigo 68 é a expressão “destinatário final”. Nem o artigo 11, nem o 3º, conceituam a expressão. O que se encontra no artigo 3º, em seu inciso V, é o conceito de “destinatário”: “aquele a quem for fornecido o bem ou serviço, podendo ser o próprio adquirente ou não“.

Como o PLP 68 deixa claro que o destinatário não se confunde com o adquirente (responsável pelo pagamento), resta da definição somente que o destinatário é aquele para quem é fornecido o bem — e o mesmo artigo 3º define fornecimento como “entrega ou disponibilização” do bem.

Retomando o artigo 68, observa-se que as expressões “entrega” e “destinatário final” são centrais para compreensão do local da operação eleito pelo legislador — e, como consequência, da definição do sujeito ativo do IBS-Importação. Logo, causa preocupação que nenhuma das duas esteja adequadamente delimitada no PLP 68, com linguagem precisa e à prova de interpretações plurais.

É inevitável não traçar um paralelo com as discussões travadas no Tema 520. A ausência de delimitação do conceito de “entrega” pode trazer discussões assemelhadas àquelas que envolveram o “ingresso físico” previsto na LC 87/96 e levaram o STF a ampliar o alcance originalmente definido por lei complementar.

Chama ainda mais atenção a expressão “destinatário final”, pois foi justamente esse conceito que gerou a incongruência entre a argumentação desenvolvida ao longo do acórdão e a decisão naquele caso — e segue gerando interpretações divergentes por parte das autoridades fazendárias estaduais.

Mesmo diante desse histórico, mais uma vez se elege o termo “destinatário” para designar o local da operação de importação, sem maior precisão, como já vivenciado. A qualificação do destinatário como “final” não contorna as possibilidades de interpretações diversas — tanto pelo contribuinte, quanto pelas autoridades fazendárias.

Ainda que se afirme que as discussões de sujeição ativa estariam mitigadas com o novo modelo de tributação — orientado pela tributação no local em que se encontra o consumidor final, que suportará todo o ônus da carga tributária —, isso não endereça as preocupações no caso da importação. Embora a adoção de um único tributo tenha potencial para mitigar os desafios decorrentes dos conflitos de competência [11], isso não resolve inteiramente a etapa de importação.

Quando há importação, já existe um primeiro momento em que se precisa decidir para quem será recolhido o IBS-Importação, independentemente do desdobramento subsequente da cadeia comercial até o local em que se encontra o consumidor final. O consumidor final se percebe em um segundo momento. Isso decorre do momento em que é apurado, hoje, o ICMS-Importação e seguirá de maneira semelhante com o novo sistema. O PLP 68 estabeleceu como fato gerador do IBS-Importação a liberação dos bens submetidos a despacho para consumo [12]. Se o momento do recolhimento é na liberação do bem, pouco importa quem será o seu consumidor final, tornando relevante compreender, na verdade, quem é o destinatário final do artigo 68.

Daí a necessidade de se ter clareza do sujeito ativo, para que outro ente federativo não avoque para si a competência arrecadatória, autuando sob o argumento de quem em seu território ocorreu, de fato, a entrega ou porque ali se encontra o destinatário final. O conflito será ainda mais provável caso existam alíquotas distintas de IBS entre os dois locais (município ou estado) envolvidos — o de desembaraço e o subsequente (e.g. de industrialização, armazenagem, revenda etc.). Afinal, a EC 132 estabeleceu que a alíquota do IBS resultará da soma das alíquotas do estado e do município de destino da operação, podendo cada ente federativo fixar a sua alíquota própria [13]. Logo, é possível que o IBS-Importação tenha alíquotas nominais distintas a depender do estado — e agora também, do município — no qual se entenda que ocorreu a importação.

Conclusão

Diante da relevância da lei complementar como meio para dirimir conflitos de competência e, assim, resguardar a segurança jurídica, sua linguagem deve evitar interpretações que variem conforme critérios de conveniência.

O recente histórico de contencioso envolvendo a matéria (da perspectiva do ICMS-Importação) confirma a necessidade de maior precisão de critérios e clareza de conceitos para que se alcance a previsibilidade necessária à segurança jurídica.

Considerando a atual redação do PLP 68, a previsão contida no artigo 68 não é suficiente para assegurar a competência para exigir o IBS-Importação, podendo seguir como tema que fomenta litigiosidade.

Fonte: Consultor Jurídico