Erro tributário não é lavagem - O risco da criminalização excessiva

Área: Contábil Publicado em 30/06/2025

A fronteira entre o Direito Tributário e o Direito Penal nunca foi tão sensível, e com o avanço das tecnologias de fiscalização e a ampliação do conceito de lavagem de dinheiro, vemos cada vez mais situações fiscais sendo tratadas como casos de criminalidade financeira. O que deveria ser discutido com planilhas, códigos e interpretações contábeis, tem sido levado para as varas criminais como se fosse fruto de atividade ilícita estruturada.

Essa distorção ganhou fôlego com a alteração da lei 9.613/1998, que, desde 2012, deixou de exigir um rol fechado de crimes antecedentes à lavagem de capitais. Isso significa que, em tese, qualquer infração penal - inclusive tributária - pode ser usada para embasar uma acusação por lavagem. A consequência prática disso é preocupante: autuações fiscais, muitas vezes baseadas em divergências técnicas, estão servindo como ponto de partida para denúncias por lavagem de dinheiro, mesmo quando não há qualquer tentativa real de ocultação.

Como observa SOARES, "a lavagem de dinheiro surge, justamente, no contexto dessa expansão do Direito Penal e da ampliação de novos riscos considerados merecedores da atenção do Estado, enfrentando os mesmos desafios relacionados às críticas de legitimidade, formas de criminalização e limites da atuação punitiva. Ainda que tais aspectos possam - e devam - ser discutidos à luz da dogmática penal, é inegável que existe uma realidade internacional e nacional consolidada sobre o combate à lavagem de ativos, a qual produz efeitos concretos no cotidiano institucional, sendo, por isso, indispensável a avaliação crítica dos parâmetros legais vigentes", reforçando o alerta de que, embora a repressão à lavagem seja legítima, ela não pode servir como justificativa para ampliar o Direito Penal de forma arbitrária ou sem amparo técnico.

Essa realidade, contudo, não afasta a necessidade de observar com rigor os limites dogmáticos da imputação penal, pois o Direito Penal não aceita atalhos. O tipo penal da lavagem exige mais do que a existência de um ilícito anterior: exige dolo específico, ou seja, a clara intenção de esconder ou dissimular a origem ilícita do patrimônio, e isso não pode ser presumido. Não é porque houve omissão de receita ou erro contábil que se pode automaticamente concluir que houve lavagem, estando, nesse sentido a doutrina de BADARÓ e BOTTINI, sustentando que o esclarecimento da questão prejudicial constitui uma etapa lógica prévia indispensável à apreciação da acusação de lavagem de dinheiro: antes de se apurar se houve lavagem, é indispensável verificar a ocorrência de uma infração penal antecedente que tenha gerado bens, direitos ou valores passíveis de ocultação ou dissimulação, pois, se inexistente essa infração antecedente, a absolvição do acusado é medida de rigor.

Tal compreensão encontra respaldo firme na jurisprudência do STF, como dito no voto do então ministro Celso de Mello, no RHC 121.835 AgR, ao afirmar que "a configuração típica do crime de lavagem de dinheiro exige, para aperfeiçoar-se, a presença de uma infração penal antecedente, que se qualifica como elemento normativo do tipo, a significar que, ausente este, deixa de caracterizar-se o crime de lavagem".

Transformar qualquer inconsistência fiscal em evidência criminal é um erro grave, e ao colocar o contribuinte sob a acusação de lavagem apenas por ter sido autuado desconsidera completamente o que diferencia o erro da fraude. A sonegação não é, por si, lavagem - e a elisão não é crime - reinvestir recursos no próprio negócio ou reorganizar operações não caracteriza dissimulação sem que haja intenção comprovada.

Ao ignorar essas distinções, o Estado ultrapassa os limites do razoável, vindo a inverter a presunção de inocência que deveria proteger o cidadão, passando o contribuinte a ser taxado como culpado até prova em contrário. E o que deveria ser um processo fiscal vira, com rapidez e dureza, um processo penal.

No campo do direito penal, a utilização de presunções quanto à existência de um crime deve ser tratada com rigorosa cautela, visto que o processo penal tem por escopo central a proteção dos direitos e garantias fundamentais do acusado, em especial sua liberdade. A aplicação de presunções nesse domínio, sobretudo quando importadas de outros ramos jurídicos, como o direito tributário, provoca sérias inquietações, pois pode resultar na violação de pilares essenciais, como a presunção de inocência, além de afetar os critérios necessários para o juízo de condenação, embora costumeiramente se sustente que tais instrumentos não são formalmente adotados no processo penal brasileiro.

O uso de sistemas automatizados como COAF, e-Financeira, e-Social e cruzamentos digitais em tempo real também tem contribuído para essa escalada. Embora úteis para combater fraudes reais, esses instrumentos não substituem o juízo crítico, e os alertas e as movimentações atípicas não podem ser tratados como provas, precisando de analise profunda e de interpretação, pois somente o número em si isolado, não traz os fatos completos. Assim, seria oportuno que se avançasse na formulação de propostas normativas que delimitassem com maior precisão os contornos do crime de lavagem de dinheiro no contexto tributário, bem como regulamentassem expressamente os limites da atuação de órgãos como o COAF, prevenindo excessos e preservando a segurança jurídica.

O STJ tem manifestado de forma inequívoca que a presunção tributária não pode servir como fundamento exclusivo para uma condenação penal, ressaltando que, para a configuração dos crimes contra a ordem tributária, é imprescindível que o Parquet demonstre a materialidade delitiva mediante elementos probatórios efetivos, que extrapolem a mera presunção de ocorrência de infração fiscal.

O emprego de presunções como suporte à comprovação da materialidade delitiva também se depara com o compromisso declarado de busca pela verdade que, conforme lecionam os epistemólogos do processo, pode ser sintetizado como a tentativa de fazer coincidir a premissa fática do raciocínio judicial com os fatos tal como efetivamente ocorreram. Ainda que a verdade do processo penal nunca seja a verdade, tal pretensão, ou melhor, esse princípio, impõe que o juiz busque a verdade dos fatos, sustentando sua decisão em provas robustas e consistentes.

Essa escalada penal indevida contamina o ambiente de negócios, afasta investidores e gera um clima de constante suspeita sobre quem empreende. Um sistema tributário que, além de complexo, carrega a sombra do enquadramento criminal sem critérios objetivos, não promove justiça: promove medo. É claro que fraudes devem ser combatidas, e quem age com dolo e estrutura operações para enganar o fisco, deve responder com o devido rigor, contudo, é fundamental distinguir o erro de boa-fé da fraude deliberada.

Misturar tudo é punir quem cumpre, junto com quem burla - e isso só enfraquece o sistema, e neste contexto, a atuação da advocacia criminal especializada e dos peritos contábeis forenses é fundamental para garantir que a correta qualificação das condutas se dê com rigor técnico, evitando injustiças e assegurando o devido processo legal.

O que está em jogo aqui não é a impunidade, mas a segurança jurídica. Não se trata de proteger sonegadores, mas de proteger o próprio Direito Penal Tributário de ser transformado em ferramenta de intimidação e arrecadação, cabendo à Receita Federal, ao Ministério Público e ao Poder Judiciário exercerem seus papéis com equilíbrio, técnica e respeito à Constituição. O que se espera dessas instituições não é o rigor cego, mas a moderação lúcida, a interpretação razoável e o uso proporcional da força do Estado.

Criminalizar sem dolo é tortura jurídica - presumir má-fé onde há incerteza é negar o Direito, e usar a lavagem como sanção extra à infração fiscal é um atalho perigoso que só conduz ao autoritarismo.

Nem toda ilegalidade é crime. Nem todo contribuinte é criminoso. Mas é igualmente necessário reconhecer que, em determinadas situações, práticas tributárias aparentemente regulares podem esconder mecanismos sofisticados de fraude, o que justifica a vigilância do Estado, sempre pautada pela legalidade e pela proporcionalidade.

 

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Fonte: Migalhas.com