Preocupações acerca do regime do Comitê Gestor do IBS no PLP 108/2024
Área: Fiscal Publicado em 07/08/2025Preocupações acerca do regime do Comitê Gestor do IBS no PLP 108/2024
À conturbada instalação parcial do Conselho Superior do Comitê Gestor do Imposto sobre Bens e Serviços (CG-IBS), soma-se a pendência de regulamentação do seu regime jurídico. Isso porque o Projeto de Lei Complementar 108/2024 (PLP 108/2024) ainda se encontra atualmente em tramitação na Comissão de Constituição e Justiça do Senado. A redação final do projeto aprovado na Câmara foi remetida ao Senado em 8/11/2024 [1], para regulamentação da reforma tributária veiculada pela Emenda Constitucional nº 132, de 20 de dezembro de 2023 (EC nº 132/2023).
De plano, importa resgatar que o §1º do artigo 156-B da Constituição de 1988 definiu o CG-IBS como “entidade pública sob regime especial”, a quem foi atribuída “independência técnica, administrativa, orçamentária e financeira”, para cumprir, conforme o caput do citado dispositivo e respectivos incisos, as destacadas competências de: (1) editar regulamento único e uniformizar a interpretação e a aplicação da legislação do imposto; (2) arrecadar o imposto, efetuar as compensações e distribuir o produto da arrecadação entre estados, DF e municípios; bem como (3) decidir o contencioso administrativo correspondente.
Trata-se de arranjo jurídico inovador dedicado à gestão unificada da competência tributária estadual, distrital e municipal sobre bens e serviços. Todavia, o CG-IBS ainda não possui clara identificação acerca da sua natureza e do seu regime jurídicos nem mesmo no âmbito do projeto de lei complementar supostamente dedicado à sua regulamentação. A densificação do que virá a ser e de como funcionará, de fato, o Comitê Gestor se ressente de previsões muito vagas no PLP 108.
Em meio à tramitação ainda em curso no Congresso, podem ser identificados riscos de larga monta em tamanha reengenharia institucional, até porque a complexidade organizacional decorre da estatura das competências e tensões que a entidade terá de administrar diuturnamente. Em outras palavras, o ineditismo do comitê é proporcional ao poder decisório que ele concentrará em suas mãos, a pretexto de operacionalizar institucionalmente a simplificação tributária pretendida pela Emenda nº 132/2023.
Precisamente porque se trata de entidade dotada de poderes consideravelmente altos e, por isso, muito disputados, o artigo 156-B da CF exige que a lei complementar disponha sobre a representação paritária entre os entes, na instância máxima de deliberação do comitê, com garantia de alternância na sua presidência entre o conjunto dos estados e DF, bem como o conjunto dos municípios e DF.
Na seara orçamentário-financeira, a CF/1988, na forma do artigo 156-B, §2º, III, instituiu vinculação a percentual do produto da arrecadação do imposto destinado a cada ente federativo em prol do financiamento do Comitê Gestor. Daí se explica a previsão constitucional de que o controle externo do CG-IBS será exercido pelos estados, DF e municípios (artigo 156-B, §2º, IV da CF).
Muito embora tal entidade devesse ser definida primordialmente por meio de lei complementar, a imprecisão e o caráter lacunoso do PLP 108/2024 parecem indicar que a real operacionalização do Comitê será feita posteriormente de modo administrativo. Isso porque, na forma do inciso VII do §2º do artigo 156-B da CF/1988, a organização e o funcionamento do CG-IBS foram remetidos para normatização infralegal ulterior e, com isso, tendem a ser materializados apenas no âmbito do seu regimento interno.
Há indicativos no PLP 108/2024 de sujeição ao regime jurídico administrativo, como se evidencia a partir do elenco de relatórios de prestação de contas consonantes, no que couber, com a Lei nº 4.320, de 17 de março de 1964, e com a Lei de Responsabilidade Fiscal. Igualmente é possível extrair a prevalência do regime publicístico a partir da previsão do artigo 49 do aludido projeto de que as contratações do CG-IBS serão regidas “pelas normas gerais de licitação e contratação aplicáveis às administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”.
Sem se subordinar a qualquer ente político, o comitê há de exercer competência compartilhada de gestão do Imposto Sobre Bens e Serviços. Assim é que o CG deve, na forma do parágrafo único do artigo 1º do PLP 108/2024, coordenar federativamente “a atuação, de forma integrada, das administrações tributárias e das Procuradorias dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, observadas as respectivas competências”, sendo-lhe resguardada, para tanto, a “ausência de vinculação, tutela ou subordinação hierárquica a qualquer órgão da administração pública”.
Tal independência, por sinal, repercute fortemente sobre a liberdade orçamentário-financeira do comitê, vez que, na forma dos artigos 41 e 42 do PLP 108/2024, as regras fiscais que regerão a sua atuação, com os respectivos limites e metas, serão definidas pelo seu regimento interno.
Trata-se de algo efetivamente inédito no ordenamento brasileiro a instituição por meio de emenda constitucional de uma nova entidade pública não integrante da estrutura de qualquer ente político específico, cuja natureza jurídica somente será, de fato, definida no âmbito do seu respectivo regimento interno e sem aparentes restrições fiscais, mesmo em meio a um cipoal normativo tão significativo.
Do ponto de vista orçamentário-financeiro, sobressai a necessidade de que o CG-IBS tenha de justificar sua existência permanentemente, na forma do artigo 43 do PLP 108/2024, por meio da elaboração e da disponibilização mensal de relatórios aos estados, ao DF e aos municípios.
A transparência contínua dos dados é um nuclear imperativo de legitimidade decisória, mas não é, por si só, suficiente para resguardar a integridade do regime jurídico excepcional do CG-IBS. Nesse sentido, tende a demandar muita concertação federativa o exercício do controle externo sobre o CG-IBS, tal como preliminarmente previsto no artigo 40 do PLP 108/2024, o qual deve ser regulado mais detidamente por “regimento interno [a ser] estabelecido por ato conjunto dos Tribunais de Contas” estaduais e municipais (conforme o §1º do citado dispositivo).
De um lado, os Tribunais de Contas se ocuparão primordialmente da fiscalização contábil, operacional e patrimonial do CG-IBS, tal como prevê o caput do artigo 40. De outro, a aprovação das contas relativas à execução contábil, financeira, orçamentária e patrimonial do Comitê ficará a cargo do seu Conselho Superior, que, concomitantemente, possui a competência de propor e aprovar o orçamento anual do próprio CG-IBS, à luz do artigo 11, incisos VI e IX do PLP 108/2024.
Como se depreende da regulamentação contida no PLP 108, parece haver a prevalência do controle interno, até porque segue profundamente imprecisa a formulação de como ocorrerá e qual será o alcance do controle externo do Comitê Gestor. É, aliás, altamente vaga e fugaz a hipótese do artigo 40 do aludido projeto de que a fiscalização contábil, operacional e patrimonial do CG-IBS seja “realizada de forma coordenada, compartilhada e colegiada pelos Tribunais de Contas dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e Municipais, que se reunirão, preferencialmente, de modo virtual”.
A única regra de competência de controle externo, de fato, clara reside na previsão do § 4º do artigo 40 do PLP 108/2024, segundo a qual o Tribunal de Contas da União fiscalizará o CG-IBS exclusivamente em relação aos recursos repassados pelo governo federal (R$ 3,8 bilhões), em sede de operação de crédito destinada à implantação inicial do comitê, até o seu integral ressarcimento, na forma do artigo 63 do citado projeto.
O julgamento das contas prestadas pelo CG-IBS perante a estrutura colegiada de Tribunais de Contas, à luz do §3º do artigo 40 do PLP 108, deve ocorrer até o término do exercício seguinte àquele em que tiverem sido apresentadas.
Dentro da estrutura do Comitê, o órgão responsável por realizar a sua gestão orçamentário-financeira é a Diretoria Administrativa (artigo 37, II), que deve submeter seus atos à apreciação da Diretoria Executiva (artigo 27, XX), para que, ao final, haja a apreciação conclusiva e, no que couber, aprovação do Conselho Superior (artigo 11, IX). Eis a dinâmica do controle interno definida pelo PLP 108/2024.
O Comitê Gestor goza de vinculação percentual do produto da arrecadação do IBS de cada ente federativo, que, na forma do inciso I do artigo 47 do PLP, corresponde a, no máximo, 0,2%. A orçamentação da aplicação dos recursos oriundos de tal fonte vinculada de receita também está limitada ao patamar de 0,2% da estimativa de arrecadação do IBS para o respectivo exercício financeiro (inciso II do caput do mesmo dispositivo). Para conciliar receitas e despesas de modo transparente e legítimo, a proposta orçamentária do CG-IBS deve ser formulada anualmente pelo seu Conselho Superior até 31 de julho, cumprindo o rito definido pelos parágrafos do artigo 47 do PLP 108.
Nos §§2º a 4º do artigo 47, a governança orçamentária do Comitê Gestor tende a ser bastante simplificada pelas regras de apreciação da sua proposta de orçamento. Haverá aprovação tácita se não houver a rejeição da proposta orçamentária, em até 30 dias, pela maioria absoluta dos Poderes Legislativos dos entes federativos de origem dos membros titulares do Conselho Superior do CG-IBS.
Além da vinculação de até 0,2% da receita do IBS destinado a cada ente federativo, o Comitê Gestor conta a estrutura de financiamento prevista nos artigos 46 e 48 do PLP 108/2024, que lhe permite também gerir os rendimentos de aplicações financeiras e outros recursos a ele destinados e quaisquer outras rendas obtidas. Vale destacar que o CG pode promover diretamente a retenção de valor equivalente ao percentual fixado nos termos do inciso I do caput do artigo 47 do PLP sobre o produto da arrecadação corrente do IBS destinado mensalmente a cada ente federativo, independentemente de autorização legislativa no orçamento dos estados, do Distrito Federal e dos municípios.
O §2º do artigo 48 do PLP 108 faculta, adicionalmente, que até 0,05% da arrecadação corrente do IBS sejam destinados “a programas de incentivo à cidadania fiscal por meio de estímulo à exigência, pelos consumidores, da emissão de documentos fiscais, conforme dispuser o regulamento único do imposto”.
Caso haja excesso de arrecadação durante a execução orçamentária do CG-IBS, em função de retenção de montante superior ao previsto no seu orçamento, o Conselho Superior do Comitê deliberará sobre destinação do excedente, podendo ser reservada parcela para o financiamento do orçamento de exercícios financeiros subsequentes, na forma do §3º do artigo 48 do PLP 108/2024.
Nas regras de transição relativas à instalação do CG-IBS, a vinculação do produto da arrecadação do aludido imposto ao financiamento do Comitê oscilará de 100% em 2026 até 0,5% em 2032, conforme prevê o artigo 62 do PLP 108/2024. Tal fonte vinculada de recursos visa, primordialmente, ao abatimento paulatino dos R$ 3,8 bilhões oriundos de operação de crédito junto à União, de que trata o artigo 63 do citado projeto.
De todo modo, o custeio do CG-IBS está circunscrito – na leitura conjugada do artigo 64 com os incisos I, II, III e IV do caput do artigo 63 do PLP 108 – aos limites máximos de seiscentos milhões de reais em 2025; de oitocentos milhões de reais em 2026; um bilhão e duzentos milhões de reais em 2027; e um bilhão e duzentos milhões de reais em 2028. Nesses dois últimos exercícios financeiros, há possibilidade de suplementação do orçamento em até “50% da diferença entre a receita do IBS destinada ao financiamento do CG-IBS, nos termos da alínea b do inciso I do caput do art. 62, e os valores previstos nos incisos III e IV do caput do artigo 63” do PLP.
Ainda durante a transição, o teto do orçamento do CG não poderá ser superior à aplicação dos seguintes percentuais sobre a estimativa de arrecadação do IBS para o respectivo exercício: 2% em 2029, 1% em 2030, 0,67% em 2031 e 0,5% em 2032, conforme leitura conjugada das alíneas ‘a’ a ‘d’ do inciso II do caput do artigo 62 com o §3º do artigo 64 do PLP 108.
Por fim, mas não menos importante, o regime especial do Comitê Gestor se estende à adaptação dos seguintes instrumentos de prestação de contas periódicos:
1) relatório resumido de execução orçamentária de que trata o artigo 41 do PLP 108, para fins de monitoramento bimestral do balanço orçamentário, dos demonstrativos das receitas e despesas do CG-IBS e dos seus restos a pagar;
2) relatório de gestão fiscal previsto no artigo 42 do PLP, contendo demonstrativos quadrimestrais adaptados da despesa total com pessoal; da dívida consolidada; das operações de crédito, inclusive por antecipação de receita; e da disponibilidade de caixa do CG;
3) emissão anualmente dos demonstrativos demandados pela Lei nº 4.320/1964, a saber, Balanço Patrimonial; Demonstração das Variações Patrimoniais; Demonstração dos Fluxos de Caixa; Balanço Orçamentário; e Balanço Financeiro, na forma do artigo 44 do PLP.
Os relatórios e demonstrativos intermediários são expressão do fortalecimento do controle concomitante, à luz do que a LRF buscou fomentar, sem prejuízo da prestação de contas anual referente ao exercício financeiro anterior, a qual deverá ser apresentada até o dia 30 de abril e disponibilizada no sítio eletrônico do CG-IBS.
O surgimento de uma superestrutura institucional, com competência decisória relativa à gestão da potencialmente trilionária da arrecadação do IBS, clama cautela, seja porque dotada de uma potente e ainda imprecisa “independência administrativa, técnica, orçamentária e financeira”; seja porque sua operacionalização foi quase toda remetida para ato infralegal (ou seja, seu regimento interno).
Não se pode ignorar que o Comitê Gestor do IBS corresponde ao eixo orgânico-institucional da Reforma Tributária trazida pela EC 132. Ao fim e ao cabo, a gestão compartilhada do imposto que substituiu os principais congêneres de competência dos estados, DF e municípios demanda esforço hermenêutico acerca das limitações operacionais e das regras fiscais que lhe conduzirão o fluxo decisório ao longo dos próximos anos.
Tal como o CG-IBS se encontra normatizado no âmbito do PLP 108/2024 que deveria regulamentá-lo e esclarecê-lo, ele segue expressando, de forma um tanto temerária e desconhecida, o experimentalismo normativo empreendido pela EC nº 132/2023 para a concentração de competências federativas da tributação sobre bens e serviços. Se a gestão tributária federativamente compartilhada do IBS vai funcionar ou não, apenas o tempo e o regimento interno do CG poderão elucidar.
[1] O inteiro teor do Autógrafo do PLP 108/2024
Fonte: Consultor Jurídico