Podem os sócios integralizar as quotas subscritas com serviços?
Área: Contábil Publicado em 06/02/2025A sociedade, isto é, o sujeito de direito autônomo e distinto das pessoas que a constituíram, para que possa exercer as atividades constantes no seu objeto social, necessita de recursos que, inicialmente, são aportados pelos sócios. Em outras palavras, a organização da atividade empresarial na forma de sociedade demanda capitalização, procedimento que envolve a subscrição de frações representativas desse fundo comum (o capital social) e a integralização, ato representativo da efetiva transferência dos recursos para a sociedade. Portanto, no momento de constituição da sociedade, o capital social corresponderá exatamente ao seu patrimônio, quadro que sofrerá mudanças após a prática dos negócios a que a pessoa jurídica se propõe.
Antes, todavia, de adentrar no ato societário de aporte de recursos para a formação do capital social, tema sobre o qual nos propomos a refletir, necessário passar, ainda que brevemente, pela instituição que é a “sociedade”.
De imediato, oportuno rememorar que as sociedades se classificam em simples ou empresárias pelo seu objeto, exceção às sociedades por ações e cooperativas, conforme se extrai do artigo 982, e parágrafo único do Código Civil [1].
Sem adentrar em reflexões a respeito da necessidade ou não de regimes diferenciados, o critério distintivo entre sociedade simples e empresária adotado pelo legislador assenta-se no objeto social [2]: a sociedade empresária exerce atividade econômica própria de empresário sujeita a registro, enquanto a sociedade simples exerce atividade econômica também sujeita a registro, mas não aquela que caracteriza o empresário. O número de colaboradores, auxiliares, a organização, a estrutura ou o modo de atuar no mercado não definem a classificação da sociedade, pois o que importa é o objeto delimitado no seu ato constitutivo.
E para se verificar se a atividade econômica é própria de empresário, se faz necessário analisar o conceito de empresário enunciado no artigo 966 do Código Civil: “Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou serviços”. Ou seja, a sociedade empresária estrutura os fatores de produção (capital, mão de obra, insumos, tecnologia) para o exercício profissional da empresa.
O parágrafo único do artigo 966 do Código Civil expressamente excetua do conceito de empresário “quem exerce profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda que com o concurso de auxiliares ou colaboradores”. Portanto, a sociedade que tiver por objeto social o exercício de profissão intelectual (literária, artística ou científica) configura sociedade simples, salvo se o exercício dessas “atividades intelectuais, artísticas, científicas ou literárias for parte de uma atividade maior, na qual sobressai a organização” [3].
Em outras palavras, a sociedade constituída para o exercício de profissão intelectual é excluída do enunciado contido no caput do artigo 966 do Código Civil, “salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa”, o que ocorre quando o objeto da sociedade contemplar outra atividade de natureza não intelectual (reveladora da condição de empresária) que acabe absorvendo a atividade intelectual, que, por conseguinte, se torna elemento daquela.
Sobre o assunto, esclarecedora a lição de Sérgio Campinho:
“O exercício da profissão intelectual será, dentro do contexto, em nosso entendimento, elemento de empresa, se nele não se encerrar a própria atividade. Os serviços profissionais se constituem, assim, em instrumento de execução da empresa. Os serviços profissionais são um elemento de uma atividade. Um exemplo da hipótese seria a situação das casas de saúde e hospitais em que a execução da profissão intelectual se apresenta como um dos elementos do exercício da empresa. Nessas sociedades não há um mero e exclusivo realizar da profissão intelectual, a qual vai consistir em um dos elementos da atividade econômica que será explorada de forma organizada” [4].
Foge aos objetivos desse ensaio explorar a técnica legislativa determinante da exclusão da profissão intelectual do conceito de empresário, interessando-nos tão somente chamar a atenção para o fato de que, no caso, o patrimônio intelectual dos integrantes da sociedade simples se sobressai em relação aos investimentos com bens, dinheiro ou direitos para a formação do capital social, razão pela qual na sociedade simples admite-se a contribuição com serviços, isto é, o sócio pode ingressar na sociedade e dela participar sem contribuir com recursos materiais.
Relação capital-trabalho entre sócios x sociedade
Evidentemente, um dos elementos essenciais de todas as sociedades é a contribuição dos sócios para a formação de um fundo comum (o capital social), recurso necessário para que a sociedade possa exercer as atividades definidas no seu objeto social. Ocorre que, somente as sociedades simples albergam a figura do sócio que contribui com serviços para a alcance e realização dos objetivos sociais. Isso porque nas sociedades simples a pessoa dos sócios é um ativo de significativa expressão.
Nas sociedades empresárias do tipo limitada e por ações não se admite a integralização (entenda-se, a realização) das quotas ou das ações subscritas (entenda-se, frações do capital social) com serviços, sendo indispensável a transferência de dinheiro, bens – materiais ou imateriais — ou crédito do sócio para a sociedade. Ou seja, a integralização deve ser feita com patrimônio específico do próprio sócio. Afirma o artigo 7º da Lei nº 6.404/76 que: “O capital social poderá ser formado com contribuições em dinheiro ou em qualquer espécie de bens suscetíveis de avaliação em dinheiro.” O Código Civil, por sua vez, deixa claro que nas sociedades limitadas “é vedada contribuição que consista em prestação de serviços.” (§ 2º, artigo 1.055).
É interesse reproduzir, inclusive, disposição relativa à impossibilidade de realização do capital com lucros futuros: “Não poderá ser indicada como forma de integralização do capital a sua realização com lucros futuros que o sócio venha a auferir na sociedade.” (Instrução Normativa DREI 81, de 2020; Anexo IV; Capítulo II; Seção I; item 4.3.3).
Embora seja comum em sociedades limitadas empresárias os sócios participarem com trabalho, estando à frente dos negócios e se relacionando diretamente com os clientes, isso não significa, sob a perspectiva jurídica, a possibilidade de integralização das quotas sociais subscritas com prestação de serviços. Em resumo, mesmo uma sociedade limitada empresária de perfil personalista, onde a pessoa do sócio tem uma função preponderante, o investimento para fins de participação no capital social deverá ser realizado em dinheiro, crédito ou bens – sejam materiais ou imateriais — que tenham expressão econômica e que permitam avaliação [5].
Conquanto até o contrato social da sociedade empresária possa dispor a respeito da necessária prestação de serviços por determinado (s) sócio (s), inclusive com vinculação ao pro labore, não se admite que a integralização das quotas subscritas se opere mediante serviços.
Uma questão interessante diz respeito a contribuição do sócio, para fins de participação no capital social da sociedade empresária, com know-how que, como se sabe, traduz-se em conhecimento técnico e experiência em determinada área.
Frente a essa situação, e partindo da premissa de que know-how é um bem jurídico de natureza imaterial [6], mostra-se possível ao sócio integralizar as quotas subscritas com know-how, desde que mensurável o seu valor econômico [7]. No caso, indispensável a avaliação do bem intangível e seu reconhecimento no contrato social como ativo, afiançando a sua incorporação ao patrimônio da pessoa jurídica.
Fonte: Conjur