Perse: uma pedra no caminho dos incentivos fiscais
Área: Contábil Publicado em 23/02/2024A história da revogação do Perse (Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos) faz lembrar o poema de Carlos Drummond de Andrade, cujo primeiro verso diz: “No meio do caminho tinha uma pedra, tinha uma pedra no meio do caminho, tinha uma pedra no meio do caminho […]”.
Para os analistas de cultura, a repetição das palavras no poema é intencional e significa os obstáculos no trajeto da vida. [1]
Em outro passo, para parte dos tributaristas, a revogação do incentivo fiscal conhecido como Perse, na forma que se deu, além de ser uma barreira à continuidade do planejamento e compromissos das empresas beneficiárias, é juridicamente indevida. [2]
Quantas pedras existem no meio do caminho dos incentivos fiscais? [3]
É que ao longo da trajetória jurídica e pessoal, as pedras ou os problemas surgem como lembrete do dever de analisar e tomar as melhores decisões diante do que é imposto pelas normas e pelos fatos da vida em sociedade.
Sabe-se que com a pandemia da Covid-19 surgiram perdas em todos os âmbitos. [4] Foi necessário que o governo e demais instituições públicas e privadas adotassem medidas de isolamento e de quarentena, visando a preservar a vida das pessoas.
Consequentemente, o setor de eventos teve grande impacto negativo. Não à toa que, em setembro de 2020, as atividades artísticas, criativas e de espetáculos foram as primeiras a serem listadas, pelo Ministério da Economia, como o setor mais impactado, após a decretação da calamidade pública, conforme a Portaria n° 20.809. [5]
Visando a ajudar o setor de eventos, em 3 de maio de 2021 foi publicada a Lei nº 14.148, a qual instituiu o Perse, com previsão de renegociação de dívidas, bem como a concessão de alíquota zero para os tributos federais (IRPJ/CSLL/PIS/Cofins) no prazo de cinco anos (ou seja, de 2021 até 2027) [6].
Dispõe os artigos 2° e 4° da referida legislação:
“Art. 2º Fica instituído o Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (Perse), com o objetivo de criar condições para que o setor de eventos possa mitigar as perdas oriundas do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020.
Art. 4º Ficam reduzidas a 0% (zero por cento) pelo prazo de 60 (sessenta) meses, contado do início da produção de efeitos desta Lei, as alíquotas dos seguintes tributos, incidentes sobre o resultado auferido pelas pessoas jurídicas pertencentes ao setor de eventos […]”
Os benefícios fiscais podem ser concedidos de várias maneiras, incluindo a redução de alíquotas de impostos, a isenção tributária, a concessão de créditos presumidos e a diminuição da base de cálculo.
No âmbito do Perse, observou-se a redução das alíquotas dos tributos federais a zero por um período determinado, destinada às empresas que atenderam aos requisitos estabelecidos. Tal medida gerou efeitos análogos aos da isenção tributária.
A alíquota zero permeia toda a estrutura tributária de forma convencional, sem excluir qualquer crédito tributário. Entretanto, dada sua base nula, a aplicação da regra fundamental da matemática resulta no mesmo desfecho que a isenção tributária na condição de alíquota zero: ausência de valor a ser desembolsado.
Nesse sentido, até o ano de 2027, conforme estipulado pela Lei nº 14.148 de 2021, não incorrem valores referentes aos tributos federais a serem quitados pelas empresas agraciadas pelo programa Perse.
Mudança no meio do caminho
Dessa maneira, o programa emergencial foi instituído por meio de legislação, configurando-se como um benefício fiscal com um prazo de duração de 60 meses. Contudo, no decorrer de sua vigência — ou como aludia Carlos Drummond de Andrade, “no meio do caminho” —, uma medida provisória (MP) sobreveio, alterando as diretrizes estabelecidas e aprovadas pelo legislativo.
A referida MP, de nº 1.202, foi expedida em 29 de dezembro de 2023, versando sobre a revogação do artigo 4º (definidor de prazo) da legislação do Perse.
Este novo dispositivo normativo estipula que os beneficiários do programa retornem a pagar a maior parte dos tributos federais (CSLL, PIS, Cofins) a partir de abril de 2024, e o Imposto de Renda (IRPJ) em janeiro de 2025. [7]
Por outro lado, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, em entrevista ao “Roda Viva”, em vídeo datado em 23 de janeiro de 2024, na plataforma do YouTube, além de falar acerca de reequilíbrio das contas públicas, afirmou:
“[…] fizeram um acordo em torno do Perse de anos, quantos anos duraria, nós fizemos um acordo de valor, nós dissemos que o Perse tem 20 bilhões (sic), ele pode acabar em um ano, em dois, em cinco, mas ele vai acabar quando ele consumir 20 bilhões. Ele consumiu 17 bilhões no ano passado, portanto, a medida provisória se fez necessária […]” [8]
Rememorando o poema de Drummond, é possível afirmar-se que a MP nº 1.202 surge como “uma pedra no meio do caminho” das empresas enquadradas no programa. Com a revogação, surge a indagação: pode o governo mudar as regras do jogo no meio do caminho? E se sim, a forma da revogação feita é aceitável pela legislação brasileira?
A resposta da primeira pergunta é certa: o governo pode mudar as regras do jogo, sim. Desde que o faça conforme determina a Constituição, a legislação tributária e entendimento vinculantes dos tribunais superiores.
Para responder ao segundo questionamento, faz-se necessário uma análise técnica acerca das seguintes bases: Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 5.709 e informativo nº 935, do Supremo Tribunal Federal; parágrafo nº 2 do artigo 62 da Constituição (CRFB/88); aplicação do artigo 178 do Código Tributário Nacional (CTN) para a redução de alíquota a zero; Súmula nº 544, do STF; e princípio da segurança jurídica.
Se a resposta do problema da revogação imatura do Perse não for dada pelo Legislativo, a busca da solução irá compor a pasta da crescente judicialização da vida, como escreveu o ministro Luís Roberto Barroso. [9]
A disputa tributária tem grande probabilidade de ter o reconhecimento judicial de continuidade do programa, nos termos da Lei nº 14.148 de 2021. É que a além de toda a base legal supracitada, que advoga a favor das empresas beneficiárias, tem-se aplicação, por analogia, da súmula nº 544, do STF e o princípio da anterioridade tributária (artigo 60, §4º, IV, CRFB/88) como um direito e garantia individual dos contribuintes, por mais que não esteja elencado no artigo 5º da CRFB/88. [10]
Registre-se que a 7ª Vara Cível Federal de São Paulo já se pronunciou sobre o tema, com entendimento de continuidade do programa pelo prazo inicialmente previsto, conforme termos da decisão nos autos de nº 5001270-45.2024.4.03.6100.
Ao considerar que por trás do debate sobre a manutenção do Perse ou sua revogação prematura há um debate político de ideologias, constata-se que talvez o Legislativo não estará disposto a resolver o problema. Ou ainda, as casas do Congresso não irão se indispor com a resolução e deixarão a palavra final com o Poder Judiciário.
Ocorre que o grande passivo do Judiciário são as causas de direito tributário. De modo que esta situação tende a tornar a justiça disfuncional, seja pela ausência de segurança jurídica para os contribuintes, — que necessitam do planejamento tributário —, ou pela demora dos julgamentos que ocasionam obstáculos aos investimentos públicos e não contribuem para o planejamento público orçamentário. Será que vale a pena colocar pedra(s) no meio do caminho dos incentivos fiscais?
Fonte: Conjur/Clivanir Cassiano de Oliveira