Opinião - Qual a extensão da decisão do STF na jornada e no descanso de motorista empregado?

Área: Pessoal Publicado em 10/07/2023 | Atualizado em 23/10/2023 Imagem coluna Foto: Divulgação
Fonte: Imprensa JOTA

Apesar da ausência de modulação, decisão contém muito mais acertos do que eventuais erros

As polêmicas que envolvem a Lei 13.103, que versa sobre o exercício da profissão de motorista profissional, remontam à sua publicação, em 2 de março de 2015. Embora não seja uma legislação robusta, suas disposições trouxeram enorme modificação na vida dos motoristas profissionais e, obviamente, de seus empregadores.

As principais alterações que foram promovidas na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) dizem respeito à jornada de trabalho. Essas questões é que foram objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5322, ajuizada perante o Supremo Tribunal Federal (STF) pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Transportes Terrestres (CNTTT), cujo julgamento virtual findou no último dia 30.

O intuito deste texto é esclarecer, ponto a ponto, cada uma das inconstitucionalidades declaradas pelo STF.

A primeira delas diz respeito ao §3º do art. 235-C da CLT. Com a alteração promovida pela Lei 13.103/15, o dispositivo legal passou a permitir o fracionamento do intervalo intrajornada de 11 horas do motorista profissional. O entendimento do STF foi de que as “normas que disciplinam horários de descanso entre as jornadas dos trabalhadores possuem natureza de ordem pública, pois dizem respeito à própria saúde física e mental do empregado”.

Em que pese o descanso entre um dia de trabalho ser fundamental para todo e qualquer trabalhador, a pausa ganha contornos ainda mais relevantes quando se trata de categoria submetida a intensas e estressantes jornadas pelas estradas do Brasil. Além disso, a folga não é apenas para repor as energias físicas e mentais, mas também para promover o convívio social do motorista, conferindo dignidade e saúde ao trabalhador.

Neste contexto, foi declarada inconstitucional a possiblidade de fracionamento do intervalo interjornada por violação ao art. 7º, inciso XV, da Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB/88), que garante o “repouso semanal remunerado, preferencialmente aos domingos”.

A questão acerca do tempo à disposição é temática constante nas alterações legislativas e nos embates no Judiciário. A reforma trabalhista (Lei 13.467/17), por exemplo, alterou drasticamente o instituto jurídico, dando nova roupagem ao art. 4º da CLT.

Poucos anos antes, a Lei 13.103/15 já tinha o mesmo propósito em relação aos motoristas profissionais. Ela alterou o § 8º do art. 235-C da CLT, dispondo que não devem ser computados na jornada de trabalho e nem como horas extras o tempo de espera em que o motorista empregado fica “aguardando carga ou descarga do veículo nas dependências do embarcador ou do destinatário e o período gasto com a fiscalização da mercadoria transportada em barreiras fiscais ou alfandegárias”. O novo texto é diametralmente oposto ao anterior, cuja redação foi dada pela Lei 13.619/12 e consagrava como tempo à disposição os referidos períodos.

A decisão proferida na ADI 5322 aduz que a nova previsão legal infringe “norma de proteção destinada ao trabalhador”, além de além de “causar prejuízo direto” ao empregado, violando os arts. 1º, inciso I, e 7º, da CRFB/88. A parte final do invocado §8º, que prevê que o lapso temporal de espera não caracteriza tempo à disposição, foi considerada inconstitucional. O entendimento, portanto, é de que este tempo integra a jornada de trabalho do motorista profissional empregado para todos os fins.

Na mesma linha de raciocínio foi declarada inconstitucional, por arrastamento, a expressão “e o tempo de espera”, disposta na parte final do §1º do art. 235-C da CLT, que dispõe que o período em questão não deveria ser considerado como de trabalho efetivo.

O art. 235-C, §9º, da CLT, com a redação dada pela Lei 13.103/15, prevê que o tempo de espera será indenizado na “proporção de 30% do salário-hora normal”. A inconstitucionalidade reside no mesmo fundamento, isto é, a impossibilidade de se negar caráter salarial a período em que o empregado está aguardado carga e descarga ou, então, desembaraços ficais e alfandegários. Ele está à disposição do empregador, devendo ser remunerado pelo período. Ao prever o pagamento de indenização “proporção de 30% do salário-hora normal, a norma viola o disposto no art. 7º, IV, da Constituição Federal, além de representar afronta ao art. 1º, IV, do texto constitucional, por desconsiderar a valorização social do trabalho.”

A inconstitucionalidade acima exposta ganha ainda contornos mais óbvios quando se analisa a disposição do §12 do mesmo art. 235-C. Pela sua redação o motorista pode realizar as movimentações necessárias no veículo durante o tempo de espera, sem que este lapso temporal seja integrante da jornada de trabalho. Pelo texto celetista, ele trabalha enquanto ocorre o carregamento e descarregamento, mas não é remunerado.

Frise-se que a inconstitucionalidade do §12 foi declarada nos seguintes termos:

Da mesma forma, o § 12 do art. 235-C da CLT prevê igual inconstitucionalidade em razão da exclusão da jornada de trabalho das movimentações necessárias do veículo durante o tempo de espera, de modo que deve ser retirada do mundo jurídico a expressão “as quais não serão consideradas com parte da jornada de trabalho, ficando garantido, porém, o gozo do descanso de 8 (oito) horas ininterruptas aludido no § 3º.

O art. 235-D, caput, da CLT, permite, na prática, a cumulação do repouso semanal de 24 horas nos casos de viagens de longa distância, com duração superior a 7 dias. Nestes casos, o repouso seria concedido após o retorno, com limite de 3 descansos consecutivos (art. 235-D, §2º, da CLT).

Todavia, o acúmulo do descanso semanal vai em sentido oposto ao intuito do legislador constituinte. Mais uma vez há violação ao art. 7º, inciso XV, da CRFB/88, que garante a pausa semanal, preferencialmente aos domingos, a todo e qualquer trabalhador.

A decisão proferida na ADI 5322 foi certeira do estabelecer que “o descanso semanal existe por imperativos biológicos, não podendo o legislador prever a possibilidade de fracionamento e acúmulo desse direito”. O fracionamento do repouso semanal é a previsão contida no §1º do invocado art. 235-D. Pela mesma razão foi declarado inconstitucional. O descanso constitucionalmente garantido a cada trabalhador não tem, como já explicitado, apenas o condão de permitir o descanso físico e mental, mas também de proporcionar o convívio social.

Na esteira desse raciocínio não poderia prevalecer a previsão contida no §5º do art. 235-D da CLT, que permite que o descanso do motorista profissional empregado fosse usufruído dentro do veículo em movimento, quando o empregador adotasse o trabalho em duplas. A “garantia” legal é de que o motorista tenha, ao menos, repouso de “ 6 (seis) horas consecutivas fora do veículo em alojamento externo ou, se na cabine leito, com o veículo estacionado, a cada 72 (setenta e duas) horas” (art. 235-E, inciso III, da CLT).

Não é crível que a pessoa descanse, efetivamente, em tais condições, o que pode implicar, também, em risco para a segurança viária, como bem salientado pela ADI 5322:
Há um consenso geral no sentido de reconhecer a precariedade de boa parte das vias públicas no país, o que, infelizmente, contribui para o aumento da ocorrência de acidentes nas estradas. Sabe-se que o fornecimento de boas condições de direção está diretamente relacionada à questão da segurança viária, consagrada constitucionalmente no § 10 do art. 144 da Carta Magna.

A decisão prolatada na ADI 5322 é, de certa forma, paradigmática, sobretudo se forem levadas em consideração as recentes decisões em matéria trabalhista, sempre com viés flexibilizatório. Afinal, a consagração de direitos básicos dos trabalhadores é preceito hodiernamente esquecido, em homenagem a uma ampla e irrestrita autonomia da vontade.

A desconstrução do Direito do Trabalho não pode ser tolerada por qualquer matiz da sociedade. O Estado democrático de Direito tem como um de seus fundamentos “os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa” (art. 1º, inciso IV, da CRFB/88). A ordem econômica, por sua vez, é “fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna” (art. 170, caput, da CRFB/88). Aliás, não é mera coincidência que estejam previstos conjuntamente, afinal, revela que o legislador constituinte elevou ao mesmo patamar o trabalho e a livre iniciativa, o que torna incongruente a prevalência de um sobre o outro no cotidiano social.

As argumentações de que a decisão do STF pode aumentar os custos das empresas e até mesmo de toda uma cadeia produtiva são críveis e razoáveis. Todavia, não se pode admitir que a precarização do trabalho seja o norte a ser perseguido em homenagem a preços mais baixos.

Legislações trabalhistas flexíveis acabam por acarretar prejuízos maiores para a sociedade, seja por custos indiretos relativos à saúde e previdência, por exemplo; seja no que tange à desvalorização do próprio trabalhador. Ele é o pilar da nossa existência e deve ser sempre assegurado de maneira digna, decente, capaz de ser agente de transformação.

A decisão proferida pelo STF, portanto, contém muito mais acertos do que eventuais erros. Talvez o que se possa criticar, ao menos no momento, é a ausência de modulação dos seus efeitos, o que acarreta insegurança jurídica e o indesejado passivo trabalhista.

Em arremate espera-se que o trabalho continue “na moda”, sendo valorizado, e não depreciado em nome de um falso avanço, calcado num pseudoempreendedorismo e na falácia do hipersuficiente.

JÚLIO CÉSAR DE PAULA GUIMARÃES BAÍA – Graduado em Direito pela Faculdade de Direito da UFMG. Pós-graduado em Direito Civil pela FGV. Mestre em Direito do Trabalho em UFMG. Ex-procurador do Tribunal de Justiça Desportiva da Federação Mineira de Futebol. Professor universitário. Professor de cursos de pós-graduação. Consultor Educacional do Grupo Cogna. Diretor de Atualização Legislativa da Comissão de Direitos Sociais e Trabalhistas da OAB-MG e diretor tesoureiro da Comissão de Direito Desportivo da OAB-MG. Vice-presidente da Associação Mineira da Advocacia Trabalhista (AMAT). Advogado NULL Fonte: NULL