Isenção de IR é medida de justiça fiscal, mas tem contradições

Área: Contábil Publicado em 10/10/2025

A justiça tributária ocupa posição nuclear no ordenamento jurídico das sociedades democráticas, constituindo o ponto de interseção entre a legitimidade do Estado fiscal e a efetividade do princípio republicano da igualdade. O tributo não é mero expediente de arrecadação; é instrumento de concretização de justiça social e de redistribuição de riqueza.

Assim o quis o constituinte originário de 1988, ao consagrar nos artigos 145, § 1º, e 153, § 2º, inciso I, da Constituição da República, o dever estatal de observar a capacidade econômica de cada contribuinte e a progressividade como critério de equidade tributária.

No Brasil, país de renda média e desigualdade histórica, o imposto sobre a renda é o principal veículo para a realização do ideal de redistribuição.

O Projeto de Lei nº 1.087/2025, recentemente aprovado pela Câmara dos Deputados, nasceu sob o signo desse propósito: reduzir a carga sobre as rendas do trabalho e onerar de modo moderado as rendas do capital.

Tal iniciativa, sob o ângulo político e moral, merece reconhecimento. Representa, ao menos no discurso, a tentativa de harmonizar o sistema tributário com os valores da solidariedade e da justiça distributiva.

Entretanto, o mérito da intenção não elide as deficiências do método. O texto aprovado está longe de configurar uma reforma tributária estrutural; antes, consiste em uma reacomodação normativa, um remendo sobreposto a um edifício antigo e já comprometido por sucessivas improvisações legislativas.

O projeto, que se apresenta como medida de justiça fiscal, encerra contradições técnicas, desequilíbrios orçamentários e um preocupante déficit de racionalidade.

Justiça fiscal como princípio constitucional estruturante

A tributação justa é a que respeita, simultaneamente, os princípios da generalidade, da progressividade e da capacidade contributiva.

A Constituição de 1988 adotou essa concepção ao vincular o dever de pagar tributos à condição econômica do contribuinte, vinculação essa que confere ao sistema tributário uma função não apenas arrecadatória, mas distributiva e moralizadora, na medida em que impõe aos mais abastados uma responsabilidade proporcional à sua força econômica.

A justiça fiscal, portanto, não se confunde com a mera legalidade da exação; exige coerência, proporcionalidade e transparência.

Inovações introduzidas pelo PL 1.087/25

O projeto aprovado promoveu modificações na Lei nº 9.250/1995, inserindo os artigos 3º-A, 6º-A, 11-A, 16-A e 16-B. As principais inovações são:

a) elevação da faixa de isenção mensal para R$ 5 mil, com redução decrescente até R$ 7.350,, conforme fórmula aritmética (artigo 3º-A);

b) isenção anual até R$ 60 mil e redução até R$ 88,2 mil (artigo 11-A);

c) instituição de tributação sobre lucros e dividendos superiores a R$ 50 mil mensais, à alíquota de 10% (artigo 6º-A);

d) criação do imposto mínimo sobre rendas anuais superiores a R$ 600 mil, com alíquota progressiva até 10% (artigo 16-A);

e) previsão de redutor do imposto mínimo conforme a soma das alíquotas efetivas de IRPJ, CSLL e IRPF, quando excedentes a 34%, 40% ou 45%, a depender do setor (artigo 16-B).

Aparentemente, trata-se de um avanço na direção da justiça fiscal. Porém, a execução prática dessas medidas revela inconsistências estruturais e contradições de natureza constitucional e econômica.

Ampliação da isenção e a exoneração de massa

O ponto mais divulgado do projeto foi a ampliação da isenção para rendimentos mensais de até R$ 5 mil.

Sob o aspecto político, a medida tem apelo popular inegável. Todavia, os efeitos fiscais e distributivos são menos virtuosos do que parecem.

Estima-se que mais de noventa por cento dos contribuintes pessoas físicas ficarão isentos de imposto, o que converte o IRPF em tributo de elite.

A consequência é a erosão da universalidade da base contributiva, princípio essencial à justiça fiscal.

A exclusão da maioria da população da condição de contribuinte direto enfraquece o vínculo cívico entre o cidadão e o Estado, além de gerar dependência crescente de tributos indiretos, que são regressivos por natureza. O sistema torna-se, paradoxalmente, menos progressivo à medida que amplia as isenções.

Outra crítica relevante recai sobre a falta de transparência na escolha do valor de R$ 5 mil.

Não há justificativa técnica, estudo de custo de vida ou correlação com índices de inflação.

O parâmetro surge arbitrário, destituído de fundamentação metodológica.

Essa opacidade contraria o princípio da publicidade orçamentária e o dever de motivação dos atos legislativos de impacto fiscal.

Progressividade aparente e a tributação das altas rendas

O artigo 6º-A reintroduz, com alíquota de 10%, a tributação de lucros e dividendos superiores a R$ 50 mil mensais.

O artigo 16-A, por sua vez, cria o imposto mínimo sobre altas rendas, com progressão até o mesmo teto percentual. Aparentemente, a intenção é restaurar a equidade entre trabalho e capital.

Entretanto, as alíquotas estabelecidas são insuficientes para cumprir a função redistributiva.

O escalonamento de 10% caracteriza progressividade apenas nominal, incapaz de produzir impacto significativo na concentração de renda.

Além disso, o § 1º do artigo 16-A exclui da base de cálculo os ganhos de capital e rendimentos isentos, o que restringe drasticamente o alcance da medida.  O resultado é a manutenção de um sistema que tributa o salário e alivia o lucro.

A verdadeira progressividade deve incidir sobre a totalidade da renda global do contribuinte, sob pena de converter-se em artifício retórico.

Indeterminação da ‘alíquota efetiva’ e a insegurança jurídica

O artigo 16-B inaugura a figura do redutor do imposto mínimo, aplicável quando a soma das alíquotas efetivas corporativas e pessoais superar os limites de 34%, 40% ou 45%. O problema reside no silêncio do texto quanto ao conceito de alíquota efetiva.

A remissão ao regulamento ofende o princípio da legalidade tributária e transfere ao contribuinte a responsabilidade por cálculos que exigem acesso a informações contábeis e fiscais de empresas distintas.

Tal exigência é de difícil cumprimento até mesmo para o investidor nacional, e praticamente inviável para o investidor estrangeiro, que não detém acesso direto às demonstrações fiscais das companhias brasileiras. O resultado é a multiplicação da incerteza e o aumento do custo de conformidade.

A medida, concebida para evitar bitributação, termina por desestimular o investimento produtivo e criar novo campo de litigiosidade.

Déficit de transparência e paradoxo orçamentário

A exposição de motivos do projeto projeta renúncia de R$ 25,8 bilhões e acréscimo de R$ 34 bilhões, gerando superávit estimado de R$ 9 bilhões.

Todavia, o texto aprovado não define a destinação desse excedente, gerando risco de que venha a inflar o montante destinado a emendas parlamentares de pouquíssima transparência republicana, ou mesmo a fundos partidários e outros que tais.

O artigo 4º limita-se a prever compensação a estados e municípios pelas perdas nos Fundos de Participação, e o artigo 5º autoriza a utilização do excedente para reduzir a alíquota da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS). Não há, porém, metodologia clara para cálculo do saldo ou prazo para sua aplicação.

Essa ausência de critérios objetivos viola o artigo 165, § 6º, da Constituição e o artigo 14, § 2º, da Lei de Responsabilidade Fiscal, que exigem transparência e vinculação da receita compensatória.

Risco regressivo e o simulacro de reforma

A leitura sistêmica do projeto revela um cenário paradoxal: o Brasil amplia a isenção da base contributiva, restringe a progressividade real e mantém privilégios fiscais para o capital financeiro.

A manutenção da alíquota linear de 15% sobre rendimentos de aplicações financeiras perpetua o desequilíbrio entre capital e trabalho. O empresário produtivo, submetido a tributos múltiplos e complexos, enfrenta maior carga e menor previsibilidade que o investidor especulativo.

O resultado é um sistema regressivo em roupagem progressista. O imposto de renda perde seu caráter universal e a política fiscal converte-se em mecanismo de legitimação de desigualdades.

Conclusão

O Projeto de Lei nº 1.087/2025 representa esforço relevante, ainda que incompleto, de recolocar o tema da justiça fiscal no debate público.

Todavia, sua execução legislativa padece de insuficiências técnicas e de incoerências constitucionais que comprometem a efetividade da redistribuição pretendida.

O texto aprovado amplia isenções de modo excessivo, onera parcialmente o capital, complica a operacionalização do sistema e negligencia a transparência orçamentária.

Não se trata de uma reforma, mas de um rearranjo episódico que, longe de corrigir distorções, as cristaliza sob nova aparência.

O Brasil continua a necessitar de uma reforma tributária abrangente, fundada na simplicidade normativa, na transparência fiscal e na equidade distributiva.

Enquanto persistirem soluções parciais e casuísticas, a promessa de justiça fiscal permanecerá um ideal retórico, e o imposto de renda seguirá espelhando as contradições estruturais de um sistema que, ao mesmo tempo em que arrecada de forma desigual, reproduz as disparidades que deveria corrigir.

O desafio contemporâneo consiste em reconduzir a tributação à sua função republicana: financiar o Estado sem desfigurar a igualdade e redistribuir riqueza sem inibir a produção, restabelecendo a confiança social na legitimidade do dever de contribuir.

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Fonte: Conjur