Decisão do STF sobre ICMS no PIS/Cofins gerou 18 filhotes

Área: Contábil Publicado em 17/06/2025

Maior vitória do contribuinte em temas tributários no Poder Judiciário, a “Tese do Século”, em que o Supremo Tribunal Federal definiu que o ICMS não incide na base de cálculo de PIS e Cofins, vem passando por um processo de esfacelamento nos últimos 8 anos, ao mesmo tempo em que já se desdobrou em, ao menos, 18 “teses filhotes”. O enunciado de 2017 que permitiria às empresas recuperar cinco anos de impostos pagos a mais teve seus efeitos restringidos pela modulação temporal feita pelo STF em 2021.

Quem obteve decisão definitiva favorável antes disso entrou na mira da Fazenda Nacional, que passou a ajuizar ações rescisórias, possibilidade referendada pelas cortes superiores brasileiras. A compensação desses valores foi limitada e escalonada por decisão do governo Lula e do Congresso, que converteu uma medida provisória sobre o tema em lei. E quem conseguiu receber de volta o que pagou a mais descobriu que os valores dos juros em função da aplicação da taxa Selic serão tributados pelas próprias PIS e Cofins. O contribuinte venceu, mas não tanto.

A própria forma como o tema foi tratado pelo Judiciário contribuiu para a bagunça criada. Quando a tese foi fixada, em 2017, a controvérsia estava mais do que amadurecida. Ela é discutida no Supremo pelo menos desde 1998, quando a corte recebeu o RE 240.785, processo que teve o julgamento concluído em 2014 definindo que o ICMS não integra a base de cálculo da Cofins, mas sem grande impacto porque não tramitou sob o rito da repercussão geral, implementado apenas em 2007. Criou-se o precedente, mas sem força vinculante, o que permitiu até que o Superior Tribunal de Justiça decidisse, em 2016, em sentido contrário, já sob o rito dos recursos repetitivos, em seu Tema 313.

A posição vinculante do STF só veio no ano seguinte, no Tema 69 da repercussão geral, que foi julgado de maneira rápida: começou em 9 de março e foi concluído em 17 do mesmo mês, sem pedidos de vista. A vitória do contribuinte, por 6 votos a 4, deixou dois pontos importantes em aberto. O primeiro é se a decisão poderia ser aplicada de maneira retrospectiva. O segundo diz respeito aos efeitos mais práticos da tese, por caber à União ressarcir contribuintes que recolheram PIS e Cofins a mais, graças à base de cálculo inconstitucionalmente inflada. Faltou definir qual ICMS seria restituído: o destacado na nota fiscal (calculado sobre o valor da operação e que configura uma estimativa do que será recolhido pelo Estado) ou o efetivamente recolhido (que pode ser diferente do que está na nota fiscal porque se submete a incidência de créditos, deduções ou compensações fiscais).

Esses pontos foram alvo de embargos de declaração em outubro de 2017. Abriu-se um período em que se iniciou o esfacelamento da Tese do Século, o que só foi possí-vel porque o Supremo levou quatro anos para resolver a questão.

 

 

A União fez grande esforço para evitar a aplicação da tese antes de seu trânsito em julgado e chegou a ser multada pelo STF. Por iniciativa própria, decidiu que o ICMS a ser restituído é o efetivamente recolhido, posição que menos lhe prejudicaria e que foi adotada pelo Carf, mas não pelos juízes e tribunais brasileiros que ousaram avançar nesse ponto — algo que o STJ não fez, por exemplo. A celeuma levou o então presidente do Supremo, ministro Luiz Fux, a oficiar presidentes e vice-presidentes dos Tribunais Regionais Federais para orientar que aguardassem a resolução dos embargos de declaração antes da remessa de novos casos, já em março de 2021.

Em maio, os embargos foram finalmente julgados. A Tese do Século recebeu seu primeiro golpe, com a modulação temporal de seus efeitos. Ficou decidido que a exclusão do ICMS da base de cálculo de PIS e Cofins só poderia ser aproveitada a partir de 15 de março de 2017 (data da fixação da tese), exceto para quem já tinha procedimentos judiciais ou administrativos até essa data. Quem esperou o Supremo resolver a questão e ajuizou a ação, por exemplo, em 2023, não pôde reaver os valores pagos a mais nos cinco anos anteriores, mas só aqueles a partir da data de corte estabelecida na modulação.

O Supremo também definiu que o ICMS a ser reavido é o destacado na nota fiscal, o que aumentou substancialmente o impacto para os cofres públicos. O advogado Ilo Diehl dos Santos, que representou o contribuinte no processo, avalia que esse ponto poderia ter sido alvo de acordo com a Fazenda. O problema é que procuradores são formados nas mesmas faculdades que advogados e orientados ao litígio. A definição, por fim, não saiu como a União queria. “Ela está devolvendo, talvez, dez vezes mais em relação ao que recebeu em PIS e Cofins”, disse o advogado. Para ele, essa é uma das gêneses do esfacelamento dos efeitos da Tese do Século desde então. “Agora, está-se buscando acomodar essa conta.”

A demora do Supremo gerou ainda uma dúvida relevante: o que fazer com os processos de aplicação da tese ajuizados depois dela e transitados em julgado antes da modulação? Esses formaram coisa julgada para permitir o aproveitamento de créditos para períodos anteriores a 15 de março de 2017. A resposta da Fazenda Nacional foi ajuizar ações rescisórias. Foram 1,1 mil delas apontando a violação manifesta de uma norma jurídica — a Tese do Século —, mesmo ela sendo posterior ao trânsito em julgado das ações rescindendas. O próprio cabimento dessas ações gerou um “limbo recursal” em que o STJ se recusava a decidir (porque a aplicação do Tema 69 do STF é constitucional) e o Supremo também (porque o cabimento da rescisória é questão infraconstitucional prevista no Código de Processo Civil). Até que, em 2024, ambas as cortes avançaram sobre a questão e deram decisão favorável ao Fisco. Essa conclusão enviou um recado deletério ao contribuinte: se nem as decisões definitivas anteriores à modulação estão a salvo, a melhor estratégia é mesmo investir no litígio preventivo para casos futuros.

Outro golpe duro no contribuinte veio do próprio STJ, que decidiu que valores decorrentes da aplicação da taxa Selic sobre tributos indevidamente pagos ao Fisco e devolvidos ao contribuinte integram a base de cálculo de PIS e Cofins. O maior exemplo de indébito tributário em aplicação naquele momento já era o da Tese do Século. No período, os efeitos dela também foram esfacelados por atos dos poderes Executivo e Legislativo. Em 2023, a Receita Federal decidiu por instrução normativa que o aproveitamento de créditos oriundos de decisões judiciais definitivas deve ser feito em, no máximo, cinco anos. Já o governo Lula publicou a Medida Provisória 1.202/2023, limitando a compensação de créditos tributários decorrentes de decisões judiciais transitadas em julgado e que superem o valor de R$ 10 milhões. O objetivo, segundo o ministro da Fazenda Fernando Haddad, foi “evitar que multinacionais fiquem cinco anos sem pagar imposto”. A MP foi convertida pelo Congresso na Lei 14.873/2024.

 

 

A disputa pela Tese do Século, nesse período, foi também de narrativas. Quando foi fixada, em 2017, a União estimava as perdas em R$ 250 bilhões. Após a modulação, quatro anos mais tarde, economistas da Instituição Fiscal Independente calcularam em R$ 120,1 bilhões, incluindo a perda de arrecadação. Já um estudo do Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (IBPT) previu que as empresas brasileiras recuperariam R$ 358 bilhões. Sem a modulação, o impacto poderia ser de R$ 587 bilhões. Ou seja, o governo federal teria ganhado R$ 230 bilhões com a restrição feita pelo STF. Em 2022, o governo avaliou esse mesmo impacto em R$ 533 bilhões com compensações e restituições, no Anexo de Riscos Fiscais da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). Já na LDO de 2024, a previsão foi de R$ 124,4 bilhões.

Para o advogado Ilo Diehl dos Santos, o balanço desses oito anos, ainda assim, é positivo. “Para o contribuinte, ficou muito bom — mais do que deveria, economicamente falando, sob a ótica da liquidação. Quem conseguiu liquidar, recuperou muito mais do que recolheu”, disse. “Os efeitos econômicos, depois o governo postergou no tempo, porque ele precisa de fluxo de caixa como qualquer empresa. Mas foi uma vitória construída em quase 30 anos. A tese não é minha: é de um conjunto de pessoas que trabalhou por isso. Deu certo para todo mundo”, concluiu.

As teses filhotes da Tese do Século são capítulos à parte nos desdobramentos do julgamento de 2017. E já eram previsíveis desde aquela época. Voto vencido no julgamento, o ministro Gilmar Mendes disse à ConJur que as consequências seriam desastrosas porque o Judiciário seria chamado a “sair despiolhando tudo o que tiver cobrança de imposto sobre imposto, como ICMS, ISS, IPI, coisas que o Supremo já declarou constitucional”. “Não tenho dúvidas em afirmar que esta decisão servirá de grande estímulo à criação das inúmeras outras teses tributárias a ocuparem a pauta dos tribunais nos próximos anos”, vaticinou. Ele não estava errado.

Depois, em janeiro de 2022, o professor e advogado Fernando Facury Scaff publicou em sua coluna na ConJur que todos os problemas se resolveriam se o STF explicasse que nenhum tributo compõe a base de cálculo para a incidência de outro tributo. Ele previu que decidir o tema de forma fracionada criaria o risco de não haver nem coerência, nem consistência, nem integridade jurisprudencial em matéria tributária.

Levantamento feito por este Anuário da Justiça encontrou tentativas de 18 aplicações diferentes da Tese do Século pelo contribuinte — só de ICMS, são oito teses filhotes, incluindo suas versões de substituição tributária (ICMS-ST) e com diferencial de alíquota interna e interestadual (ICMS-Difal). O ISS, um tributo em tudo semelhante ao ICMS, é alvo de mais três filhotes. Do que já chegou às cortes superiores, o dia a dia tem mostrado que não é possível aplicar as razões de decidir usadas pelo STF a todo e qualquer caso de tributo sobre tributo.

O STJ afastou o ICMS da base de cálculo da Contribuição Previdenciária sobre a Receita Bruta (CPRB) e da contribuição previdenciária. E retirou o ICMS-ST da base de PIS e Cofins, assim como o ICMS-Difal. Por outro lado, manteve PIS e Cofins na base de cálculo de ICMS, por falta de previsão legal para a exclusão. E autorizou a incidência da CPRB em sua própria base de cálculo, bem como o ISS no cálculo de IRPJ e CSLL pelo lucro presumido. Já a Suprema Corte ainda não sabe se o ISS deve compor a base de cálculo de PIS e Cofins — o julgamento está em 5 a 5 e aguarda voto de desempate do ministro Luiz Fux. E excluiu PIS e Cofins de suas próprias bases de cálculo. Em 2022, o Supremo ainda incluiu ICMS e ISS na base de cálculo da CPRB.

Se está difícil de acompanhar, mais complicado ainda é entender. Ao menos já se sabe que são controvérsias com os dias contados. Em dezembro de 2023, o Congresso Nacional promulgou a emenda constitucional da reforma tributária, que simplifica os impostos sobre o consumo ao criar o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) para englobar o ICMS e o ISS e a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) para substituir o PIS, o PIS-Importação, a Cofins e a Cofins-Importação. Os novos tributos começarão a ser testados em 2026 e o período de transição vai até 2033.

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Fonte: Conjur