As inconstitucionalidades do imposto seletivo sobre refrigerantes

Área: Fiscal Publicado em 07/01/2025

As inconstitucionalidades do imposto seletivo sobre refrigerantes

A reforma tributária da EC 132/2023 atribuiu, pela redação dada ao artigo 153, VIII, CF, a competência à União para instituir imposto sobre a produção, extração, comercialização ou importação de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente, nos termos de lei complementar. 

Com base nessa competência, a Câmara dos Deputados aprovou o PLP 68/2024, que, em seu artigo 406, §1º, incluiu as bebidas açucaradas entre os produtos sujeitos ao imposto seletivo.

São os impostos seletivos que se traduzem nos chamados impostos do pecado (sin tax) buscando atingir as externalidades negativas, por meio de uma maior carga tributária sobre bens considerados nocivos a determinado interesse público, como a saúde e o meio ambiente.

Inicialmente incidentes sobre o tabaco e as bebidas alcoólicas, esses impostos têm sido, mais recentemente, instituídos em diversos países sobre outros itens, como jogos de apostas, bebidas açucaradas, veículos, produtos ultraprocessados etc.

Nessas experiências internacionais com o soda tax, não se registrou significativa redução dos casos de doenças relacionadas ao peso, a despeito do aumento no preço dos refrigerantes. É que, de acordo com as pesquisas científicas reveladas por várias instituições, como a Organização Mundial da Saúde (OMS), a obesidade tem origens multifatoriais, não podendo ser atribuída ao consumo de um ou outro produto.

Deste modo, a introdução do imposto seletivo sobre as bebidas açucaradas não contribuiu para a redução dos casos de obesidade e de diabetes, cujas causas não estão associadas ao consumo de um único produto, sendo multifatoriais. De fato, não há uma relação direta entre o consumo de refrigerantes e o aumento de peso ou do número de pessoas com diabetes.

A despeito das experiências internacionais negativas, o tema continua em pauta nos debates sobre a regulamentação da reforma tributária no Congresso Nacional.

Com a EC 132/2023, que tem como um dos seus pilares a neutralidade fiscal, houve a extinção do ICMS, do ISS, do PIS, da Cofins e, em grande medida, do IPI, que poderá sobreviver apenas na Zona Franca de Manaus. A substituição desses tributos pelo IBS e pela CBS, que deverão ter alíquotas uniformes para todos os bens e serviços, ressalvados os regimes diferenciados e os regimes específicos de tributação, resultou em uma redução do espaço do princípio da seletividade, agora restrito à redução de base de cálculo verificada nesses regimes.

Nesse novo contexto normativo, seria a introdução do imposto seletivo uma forma de substituir o IPI e a sua seletividade baseada na essencialidade dos produtos? Para responder a essa pergunta não é preciso ir muito além do próprio texto constitucional, em especial na regra de competência atribuída à União, que o PLP 68 denominou de imposto seletivo, a exemplo do que já faziam os doutrinadores e autoridades envolvidas nos debates da reforma tributária.

De acordo com o novo figurino constitucional, não há espaço para finalidades arrecadatórias, mesmo que destinadas ao custeio dos serviços públicos de saúde ou à proteção ambiental. O que o constituinte derivado criou não foi uma autorização para instituir tributos que legitimam pela destinação legal do produto da arrecadação, como ocorre com as contribuições especiais e os empréstimos compulsórios.

Ao contrário, o imposto, cuja competência é definida no artigo 153, VIII, não é constitucionalmente afetado, uma vez que o produto da sua arrecadação não tem finalidade jurídica específica. É na extrafiscalidade negativa, ao desestimular o consumo desses bens onerados pelo novo imposto, que vai se fundamentar constitucionalmente a nova incidência. E o que deve ser explicitado, fora de qualquer dúvida, é a nocividade dos bens e serviços tributados para a saúde e o meio ambiente.

No exercício dessa competência, a Câmara aprovou o PLP 68, que inclui as bebidas açucaradas entre os produtos sujeitos à incidência do imposto seletivo. A proposta, atualmente em tramitação no Senado, é fixada a partir da utilização do código NCM 2202.10.00, referente a “Águas, incluindo as águas minerais e as águas gaseificadas, adicionadas de açúcar ou de outros edulcorantes ou aromatizadas”.

No entanto, os códigos utilizados pela NCM não se prestam a diferenciar produtos em razão do grau de nocividade à saúde, mas sim de acordo com interesses aduaneiros ou vinculados à capacidade contributiva do consumidor final, com base na essencialidade do IPI e do ICMS.

Em consequência do critério legislativo escolhido para definir os produtos que sofrerão a incidência do imposto seletivo, não há qualquer evidência de que as bebidas classificadas sob o código NCM eleito pelo legislador sejam mais nocivas à saúde do que outras bebidas açucaradas, como isotônicos ou energéticos, que ficaram livres da nova tributação. Tampouco em relação a outros produtos tão ou mais calóricos, como o próprio açúcar, massas e pães, que foram brindados com a alíquota zero no IBS e na CBS pelo mesmo projeto de lei.

Ao se afastar da extrafiscalidade relacionada à saúde para atender a fins arrecadatórios, o PLC 68 viola o dispositivo constitucional do artigo 153, VIII, CF. Sendo o fundamento constitucional do imposto seletivo a extrafiscalidade, baseada no desestímulo ao consumo de refrigerantes como parte de uma política pública de saúde, em especial à prevenção da obesidade e do diabetes, cumpre examinar se a proposta legislativa está em conformidade com os ditames constitucionais, em especial a regra de competência do artigo 153, VIII, e os princípios da isonomia, da capacidade contributiva e da proporcionalidade.

Na realidade, a tributação das bebidas açucaradas pelo imposto seletivo reflete uma extrafiscalidade que, além de interferir na esfera privada do cidadão ao impor padrões de "saúde" e "nutrição ideal", acaba onerando os mais pobres, excluindo-os do mercado consumidor por escolha estatal.

Essa medida se desvia de sua finalidade constitucional, distorce o objetivo extrafiscal e acentua o viés arrecadatório, tendo em vista que não se vislumbra nenhum ganho concreto para a saúde da população a partir da utilização de medidas tributárias para direcionar ou coibir determinados comportamentos, o que não parece ser compatível com o objetivo promovido com a EC 132.

Além disso, a isonomia e a capacidade contributiva são também violadas pela proposta, uma vez que alimentos altamente calóricos, como massas, trigo, óleo, açúcar e outros tipos de carboidratos, foram incluídos na lista de produtos sujeitos à alíquota zero de IBS e CBS. Essa escolha esvazia qualquer ideia de uma política extrafiscal consistente dirigida à redução de calorias para o combate da obesidade e do diabetes.

Deste modo, eleger um único grupo de produtos como responsável pela obesidade e diabetes é uma tentativa condenada ao insucesso para alcançar o próprio objetivo constitucional da norma, uma vez que não existe qualquer comprovação científica baseada nos exemplos internacionais de soda tax, de que o aumento do preço dos refrigerantes tenha contribuído para a redução da obesidade e do diabetes.

Essas políticas, no máximo, indicam uma momentânea redução no consumo de refrigerantes, sem, contudo, conseguir demonstrar o impacto positivo na saúde pública, considerando a existência de diversos produtos igualmente açucarados que podem substituir os refrigerantes como fonte de açúcar.

Assim, a distinção entre os produtores e consumidores das bebidas açucaradas e os outros produtores e consumidores fere os princípios da isonomia e da capacidade contributiva, ao estabelecer discriminação odiosa contra esses segmentos, sem justificativa idônea baseada em uma extrafiscalidade legítima.

Em outro giro, em relação ao contribuinte de fato, é importante reconhecer que nessa violação aos princípios da isonomia e da capacidade contributiva, quem será imediatamente prejudicado com as repercussões econômicas do gravame fiscal serão as famílias com menor capacidade contributiva, as quais já despendem boa parte dos seus recursos para a alimentação.

Em consequência, diante da incidência inconstitucional do imposto seletivo sobre as bebidas açucaradas, essas famílias terão duas opções: não consumir devido ao alto valor dos refrigerantes, uma vez que os tributos compõem o preço dos produtos – resultado de uma postura paternalista do Estado – ou continuar consumindo o produto e comprometer ainda mais sua renda, gerando efeitos regressivos na tributação.

A proposta legislativa também viola o princípio da proporcionalidade, pois não se mostra necessária para desestimular o consumo de refrigerantes, já decrescente e sujeito a uma carga tributária bastante elevada. Ademais, não é adequada por não constituir mecanismo idôneo para reduzir o peso da população, e carece de razoabilidade, uma vez que as boas intenções que a fundamentam não compensam os prejuízos causados à capacidade contributiva, à criação de empregos e pelo aumento da regressividade do sistema.

No caso concreto, o interesse público a ser tutelado são as políticas de saúde associadas à queda da obesidade e do diabetes, a partir do desestímulo ao consumo de bebidas açucaradas. Para atingir a esse objetivo, é necessária a tributação dessas bebidas pelo imposto seletivo? Essa providência é adequada ao atingimento da finalidade almejada? Em um exame de proporcionalidade em sentido estrito, os benefícios da medida justificam a flexibilização da igualdade e da capacidade contributiva? São essas as perguntas que passamos a responder abaixo, à luz do princípio da proporcionalidade.

Quanto à necessidade, é forçoso reconhecer que, como revelam as experiências internacionais, existem mecanismos mais eficazes de promover a redução da obesidade e do diabetes do que selecionar alguns produtos para uma tributação mais onerosa. Além disso, a alta carga tributária já aplicável ao setor de refrigerantes, bem como a queda crescente do seu consumo em nosso país nos revelam que não há necessidade de uma política pública baseada no desestímulo do seu consumo.

Ademais, os regimes diferenciados e os regimes específicos do IBS e da CBS já se prestam a estabelecer a seletividade possível e necessária para atingir aos desígnios do legislador, sem a necessidade da introdução do imposto seletivo sobre um setor dedicado à produção de itens amplamente consumidos pela população em geral.

No que se refere à adequação, já restou claro, ao longo deste estudo, que a tributação seletiva das bebidas açucaradas, como medida isolada, não é iniciativa idônea para promover a redução dos casos de obesidade e diabetes.

Há um descompasso entre os critérios utilizados pelo legislador para promover a distinção — sejam os sujeitos envolvidos, como os produtores de bebidas açucaradas em relação aos demais produtores, ou os elementos de comparação, como as bebidas adoçadas em relação a outros alimentos calóricos — e os objetivos da norma, que visam à redução da massa corporal da população e à diminuição dos casos de obesidade e diabetes.

Como vimos, tributar mais os refrigerantes não promove o emagrecimento da população, que irá buscar o bem-estar ligados ao açúcar em outras substâncias não sujeitas ao imposto seletivo.

Quanto à razoabilidade da proposta, revelada pelo exame da proporcionalidade em sentido estrito, não é difícil perceber o desbalanço entre as boas intenções extrafiscais ligadas à saúde pública e os prejuízos à isonomia e à capacidade contributiva. A medida impõe uma discriminação desproporcional em relação aos produtores de bebidas açucaradas, e, por que não dizer, aos seus consumidores também, que sofrerão a redução do grau de bem-estar que o consumo desses produtos enseja.

Além disso, a medida tende a promover a redução de postos de trabalho em um setor que emprega relativamente mais do que os que, em tese, se beneficiariam pelo consumo de substâncias alternativas. Por outro lado, a proposta torna o nosso sistema tributário ainda mais regressivo, ao arrepio de um dos pilares da reforma tributária da EC 132, consubstanciado na determinação de que as alterações legislativas deverão atenuar os efeitos regressivos do sistema (artigo 145, §4º, CF).

Deste modo, por ser medida desnecessária e inadequada para atingir os objetivos extrafiscais da regra constitucional autorizativa da incidência, e ainda, por não haver um juízo positivo quanto aos benefícios da medida frente aos seus prejuízos, a proposta de incluir as bebidas açucaradas na sujeição do imposto seletivo viola o princípio da proporcionalidade.

Em relação aos bens produzidos na Zona Franca de Manaus, inclusive as bebidas açucaradas, estes não estão sujeitas ao imposto seletivo, uma vez que o artigo 126 do ADCT autorizou a manutenção do IPI na região para manter a sua vantagem competitiva. No exercício dessa faculdade, o PLC 68 manteve o IPI na ZFM, o que afasta, de acordo com a referida regra constitucional, a incidência do imposto seletivo.

Diante, de todo o exposto, é desejável que o Senado não aprove a incidência do imposto seletivo sobre os refrigerantes, a fim de evitar soluções legislativas que se afastem da Constituição Federal, no que se refere à regra de competência do artigo 153, VIII, CF, ao princípio da isonomia, da capacidade contributiva e da proporcionalidade.

Fonte: Jota