Apuração assistida do IBS e da CBS como concretização do princípio da cooperação tributária
Área: Contábil Publicado em 03/07/2025A Emenda Constitucional nº 132/2023 acrescentou o § 3º ao artigo 145 da Constituição, estabelecendo, de forma expressa, que o sistema tributário nacional deve observar os princípios da simplicidade, da transparência, da justiça tributária, da cooperação e da defesa do meio ambiente. Esse dispositivo normativo representa, em termos constitucionais, uma guinada paradigmática: de um modelo historicamente marcado pela desconfiança mútua, pela opacidade informacional e pela litigiosidade, passa-se a privilegiar valores que reforçam o compromisso entre administração tributária e contribuintes, em ambiente de boa-fé, simetria de informações e maior previsibilidade.
O princípio da cooperação tributária, agora elevado a patamar constitucional, impõe ao Estado o dever de não apenas fiscalizar e arrecadar, mas também orientar, apoiar e simplificar o cumprimento das obrigações tributárias. Exige, em outras palavras, que o Fisco promova um ambiente institucional capaz de reduzir custos de conformidade, eliminar assimetrias de informação e estimular o cumprimento voluntário dos deveres tributários pelos contribuintes.
Antes mesmo da EC 132/2023, havia iniciativas normativas e administrativas que apontavam nessa direção. O Projeto de Lei Complementar nº 17/2022, que objetiva a instituição do Código de Defesa do Contribuinte, prevê a construção de um ambiente de maior diálogo entre Fisco e contribuintes. De igual modo, o Programa Conformidade Cooperativa Fiscal da Receita Federal do Brasil (Confia), cuja cartilha foi publicada em 2021, inspirou-se nas experiências internacionais de “cooperative compliance” da OCDE, visando selecionar contribuintes de maior porte para programas de cooperação fiscal, baseados em confiança e transparência recíprocas.
No contexto da nova tributação sobre o consumo, disciplinada pela Lei Complementar nº 214/2025, a cooperação assume papel central. A lei institui um modelo de apuração que, ao privilegiar a interação entre administração tributária e contribuintes, busca simplificar procedimentos, reduzir assimetrias informacionais e promover a conformidade voluntária.
O regime regular do IBS e da CBS exige que o contribuinte apure, em cada período mensal, os saldos devidos, com base nas operações realizadas e nas informações fiscais disponíveis. Além disso, os órgãos arrecadadores poderão disponibilizar ao contribuinte uma apuração assistida: uma estimativa prévia de débitos e créditos, apresentada antes do vencimento da obrigação. Cabe ao contribuinte validar, complementar ou ajustar essa apuração, cuja confirmação — expressa ou tácita — enseja a constituição do crédito tributário.
Declaração assistida
A inovação reside especialmente nesse mecanismo de apuração assistida, que passará a ser a regra geral. Ao disponibilizar ao contribuinte uma estimativa consolidada e antecipada dos saldos tributários a serem apurados, o Fisco assume um papel de facilitador no processo de conformidade. Essa prática contribui para reduzir riscos de erro, minimizar inconsistências nas declarações e favorecer uma cultura de cumprimento tempestivo e espontâneo.
É um modelo que reforça a simetria de dados e aproxima Fisco e contribuinte de um novo tipo de interação. Trata-se de aperfeiçoamento da sistemática tradicional, centrada em controle posterior e autodeclaração isolada. O foco se desloca agora para um ambiente de colaboração em tempo quase real, com ganhos mútuos de eficiência e segurança jurídica.
Ao substituir o modelo tradicional de lançamento por homologação, em que a constituição do crédito dependia da homologação tácita ou expressa da autoridade administrativa, o novo regime caracteriza-se como um “lançamento por declaração assistida”, cujos efeitos repercutem também sobre a contagem dos prazos de decadência e prescrição. Na prática, a constituição do crédito passa a ocorrer com a confirmação (expressa ou tácita) da apuração assistida pelo contribuinte, tornando mais precisos e controláveis os marcos temporais para exigência do crédito remanescente ou de diferenças.
A experiência internacional reforça a solidez desse caminho. Programas de monitoramento horizontal e cooperação fiscal desenvolvidos em países da OCDE — notadamente Holanda, Irlanda e Estados Unidos — têm gerado resultados consistentes: redução da litigiosidade tributária, aumento da arrecadação espontânea, maior segurança jurídica para investidores e modernização das práticas de administração tributária. Esses modelos, em geral, preveem canais formais e permanentes de diálogo entre contribuintes e a autoridade fiscal, permitindo antecipar conflitos e buscar soluções antes da constituição definitiva do crédito tributário.
O novo regime brasileiro, embora adaptado às especificidades do nosso sistema, compartilha dessa mesma diretriz. A uniformização e a sincronização da apuração assistida para IBS e CBS visam reduzir a complexidade, garantir previsibilidade e criar condições para que o contribuinte planeje suas obrigações com antecedência. Além disso, o uso intensivo de dados digitais e sistemas integrados representa avanço importante na transparência e na governança tributária.
Desafios e requisitos
Entretanto, os desafios são consideráveis. É necessário investimento robusto em tecnologia, interoperabilidade de sistemas e capacitação dos servidores públicos. O sucesso do modelo dependerá da qualidade das informações fornecidas ao contribuinte, da regularidade na atualização de dados e da capacidade institucional de prevenir inconsistências ou falhas que possam gerar insegurança jurídica.
Por outro lado, do lado do contribuinte, a apuração assistida exige maior maturidade organizacional, governança interna e gestão de riscos tributários. Empresas precisarão manter controles contábeis e fiscais rigorosos, assegurar atualização permanente de sistemas e cultivar cultura de conformidade que valorize o relacionamento construtivo com o Fisco.
Se bem conduzida, a apuração assistida do IBS e da CBS poderá se consolidar como marco de transição para uma administração tributária mais moderna, menos conflituosa e mais orientada ao contribuinte. Ao criar condições para que o contribuinte tenha previsibilidade e segurança na constituição de seus créditos, o novo procedimento de constituição dos tributos sobre o consumo reforça a confiança mútua e valoriza o princípio constitucional da cooperação, criando um ambiente mais estável para a relação tributária e para o ambiente de negócios como um todo.
Por fim, cumpre registrar que a concretização do princípio da cooperação tributária, por meio da apuração assistida, representa apenas o primeiro passo em um processo de transformação mais profundo. A expectativa é de que, com a consolidação de boas práticas, o Brasil possa estender esse paradigma para outras áreas da administração tributária, construindo um sistema menos punitivo, mais inteligente e mais alinhado às melhores experiências internacionais.
Fonte: Conjur