Análise: Por que o Imposto Seletivo deixa desconfianças no ar
Área: Fiscal Publicado em 05/06/2024Análise: Por que o Imposto Seletivo deixa desconfianças no ar
O Imposto Seletivo (IS) é um tributo novo que será cobrado a partir de 2027, estabelecido pela reforma tributária. A ideia é que ele não seja usado para elevar a necessidade de arrecadação e seja apenas extrafiscal, ou regulatório, para desestimular o consumo de bens e serviços considerados nocivos à saúde e ao meio ambiente. Mas a desconfiança está no ar, ainda que representantes do governo repitam essa ideia reiteradas vezes.
Nos últimos dias Bernard Appy, secretário extraordinário da Reforma Tributária, tem reiterado que o Imposto Seletivo não tem natureza arrecadatórios. Um dos argumentos dele é de que o projeto apresentado pelo governo estabelece que, até o fim da transição, se o que for arrecadado com o Imposto Seletivo e IPI — Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), que continuará existindo apenas residualmente, para a Zona Franca de Manaus — superar o que se arrecadava de IPI antes da reforma, será necessário baixar a alíquota da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) para manter igual o nível da carga tributária total. A CBS é o no tributo que o governo passará a arrecadar em substituição aos atuais PIS e Cofins.
O governo não teria interesse numa redução da CBS, cuja arrecadação será federal. No Imposto Seletivo, diz ele, apenas 40% ficarão com a União. “Quem vai querer usar, para fins arrecadatórios, um imposto que tem o ônus de cobrar e ficar com apenas 40%?”, disse ele, em um evento em São Paulo, dias depois do envio da proposta de regulamentação da reforma pelo governo.
A questão é que o IPI atual tem base mais ampla do que terá o Imposto Seletivo, porque é cobrado sobre produtos industrializados e por isso tem arrecadação considerada importante.
De acordo com o relatório de carga tributária da Secretaria do Tesouro Nacional (STN), o IPI arrecadou em 2023 R$ 58 bilhões, o equivalente a 0,53% do PIB, com arrecadação muito comparável ao do Imposto sobre Importação, também do governo federal, ou ao IPTU, cobrando pelos municípios sobre a propriedade de imóveis urbanos, que corresponderam a 0,5% e 0,6% do PIB, respectivamente. Vale lembrar que hoje o IPI já tem caráter regulatório e no ano passado houve uma programa de incentivo temporário para compra de veículos, com redução do IPI e de PIS e Cofins, o que afetou a arrecadação tributária federal.
“Se começarmos a olhar para o Imposto Seletivo para que ele praticamente sozinho substitua arrecadação do IPI haverá uma margem muito grande para sua elevação”, diz a tributarista Lina Santin, sócia do sócia de Salusse Marangoni Parente e Jabur.
“A desconfiança está no ar entre as empresas”, diz Santin, também pelo fato de que a extrafiscalidade do IS estava expressa na proposta original da emenda da reforma tributária, mas não entrou da Emenda Constitucional 132/2023.
O que ficou estabelecido no texto constitucional, diz o tributarista Júlio de Oliveira, na verdade traz uma miríade de possibilidades porque vários itens pode ser considerados como nocivos à saúde ou ao meio ambiente.
O projeto de lei complementar do governo estabeleceu as possibilidades de tributação. Além da extração mineral, já estabelecida pela emenda, entraram na tributação do IS tabaco e bebidas alcoólicas, itens mais consensuais para serem alvos do imposto.
Entre os alvos mais polêmicos, a proposta do governo elencou também bebidas açucaradas, pela nocividade à saúde, e automóveis, pela questão ambiental. Com exceção da alíquota máxima de 1% para extração mineral, as demais alíquotas serão estabelecidas por lei ordinária, o que ainda deixa margem para muitas discussões à frente.
Santin lembra ainda que o fato de a União ficar somente com 40% da receita do Imposto Seletivo não é necessariamente impeditivo para que o tributo possa ser elevado para aumentar arrecadação. “Pode haver um interesse comum dos três entes [União, Estados e municípios] para elevar o imposto. Inclusive Estados e municípios podem negociar isso com a União, podem demandar em algum momento o aumento do Imposto Seletivo como forma de elevar sua receita em troca de algo. Sabemos que as negociações políticas sempre demandam alguma troca.”
O histórico também deixa claro que quando há grande demanda para elevar a arrecadação, mesmo os tributos com arrecadação compartilhada são explorados. No ano passado, o governo federal tomou várias medidas para elevar a arrecadação do Imposto de Renda (IR), por exemplo.
Entre as que deram mais resultado, a tributação de IR dos fundos exclusivos rendeu somente este ano, até março, R$ 11,3 bilhões em arrecadação, contribuindo para elevar em 40,4% em termos reais o IR retido na fonte sobre rendimentos de capital, segundo o relatório da Receita Federal. Representantes do próprio governo tem indicado que isso deve ajudar no debate fiscal.
Estudo do economista Manoel Pires, coordenador do Centro de Orçamento e Política Fiscal do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre), relativiza o tamanho dessa ajuda. Pelo estudo, apenas 32% do que se arrecada com o Imposto de Renda fica efetivamente com a União, considerando todas as vinculações legais e constitucionais existentes para os recursos do IR.
Além disso, especialistas apontam tendências atuais globais. Em debate recente sobre reforma tributária, Vanessa Canado, coordenadora do núcleo de tributação do Insper e ex-assessora especial para a reforma tributária do Ministério da Economia, lembra que nas experiências existentes no mundo não há consenso sobre o caráter fiscal ou extrafiscal dos chamados excise tax, que inspiraram o Imposto Seletivo brasileiro.
Os resultados, diz ela, levam a controvérsias e também não há panorama uniforme em relação à destinação de seus recursos, se devem ter ou não vinculação específica. “Cada país tem uma origem e história diferente para o imposto”, diz ela.
Canado também lembrou que estudos têm recomendado a revisão dos excise tax não somente para controle de consumo de bens e serviços nocivos à saúde mas também para aumentar a arrecadação no pós-covid. “Os países precisam de dinheiro depois especialmente da crise sanitária e não raro se esbarra com algum informativo ou recomendação de acadêmicos e de institutos no sentido de que seria recomendado aumentar a arrecadação do excise tax”, disse ela. Esse tem sido um caminho debatido, disse ela, como alternativa à elevação do Imposto sobre Valor Agregado (IVA), já pesado em muitos países.
Santin lembra ainda que há farta doutrina e literatura tributária mostrando que não existe nenhum imposto que não tenha nenhuma característica arrecadatória. “Quando se vincula a arrecadação de um imposto ao desestímulo ao consumo de determinados bens e serviços, se restringe essa capacidade arrecadatória que é inerente a todos os tributos.”
Especialistas ressaltam que não há dúvidas sobre a boa fé da equipe técnica encarregada da reforma tributária, que apresentou texto de regulamentação da reforma tributária considerado bem fundamentado e com texto que é visivelmente resultado de dedicação e cuidado. Mas o que se coloca é que a emenda e regulamentação atual irão valer para outros mandados e outros governos à frente.
Para Edison Fernandes, sócio do FF Advogados, o texto de regulmentação proposto pelo governo cercou bastante as possibilidades do Imposto Seletivo e foi muito cuidadoso ao dar base para as tributações apresentadas. A dúvida é o componente político, diz ele. “É preciso lembrar que somente a transição da reforma tributária irá passar por três mandados em nível federal e estadual”, lembra.
Fonte: Valor Econômico