A recuperação judicial e a tributação do deságio - COSIT 74/25

Área: Contábil Publicado em 01/09/2025

A Receita Federal, ao tributar deságio em recuperação judicial como ganho patrimonial, viola a legalidade e ignora a função de preservação da empresa.

As sociedades empresariais, ao passarem por determinada crise econômico-financeira, por vezes se valem do instituto da recuperação judicial, previsto na lei 11.101/05, como um meio legítimo para se obter o soerguimento da sua atividade.

É ainda mais comum que, no plano de recuperação judicial apresentado pelo devedor, seja concedido um deságio sobre as dívidas da atividade empresarial. Apenas para exemplificar, se a dívida originária de determinado credor é de R$ 100.000,00 (cem mil reais), pode ser que a dívida a ser paga pelo devedor, seguindo-se o plano de recuperação judicial, se dê com um deságio de 50% que, em nosso exemplo, equivaleria a R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais).

Entretanto - e agora adentrando-nos no tema deste artigo de opinião -, a solução de consulta COSIT 74/251, publicada pela Receita Federal, surpreende por tratar o deságio concedido por credores (no nosso caso-exemplo, de R$ 50.000,00) como receita tributável para fins de IRPJ e CSLL.

A interpretação parte do pressuposto de que, quando o credor aceita por receber um valor inferior ao da sua dívida originária, o devedor estaria auferindo um "ganho patrimonial". O raciocínio, todavia, é contraditório: parte de um prejuízo real para se extrair dele uma obrigação tributária. A decisão não apenas ignora o contexto da concessão do deságio, como subverte a função da própria recuperação judicial, violando os fundamentos da justiça fiscal.

O princípio da legalidade tributária, previsto no art. 150, inciso I, da Constituição Federal, é absolutamente claro ao dispor que não se pode exigir tributo não previsto em lei.

Por sua vez, o CTN define, em seu art. 43, define o fato gerador do imposto de renda como a "aquisição de disponibilidade econômica ou jurídica", complementando-se pelos incisos subsequentes que estabelece que a renda é o "produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos" ou, ainda, "acréscimos patrimoniais não compreendidos" na definição anterior.

Na acepção de Leandro Paulsen2: A renda é o acréscimo patrimonial produto do capital ou do trabalho. Proventos são os acréscimos patrimoniais decorrentes de uma atividade que já cessou. "Acréscimo patrimonial", portanto, é o elemento comum e nuclear dos conceitos de renda e de proventos, ressaltado pelo próprio art. 43 do CTN na definição do fato gerador de tal imposto. E afirma, ademais, que "o legislador ordinário não pode extrapolar a amplitude de tais conceitos, sob pena de inconstitucionalidade".

O deságio, longe de ser uma espécie de acréscimo patrimonial, deve ser compreendido como uma renúncia parcial de crédito do credor, jamais podendo ser entendido, jurídica e contabilmente, como renda ou proventos de qualquer natureza, e o Fisco Federal, ao considerar o deságio como fato gerador do IRPJ e CSLL, extrapola seu papel de intérprete e cria obrigação sem respaldo legislativo, violando o princípio da legalidade tributária.

O plano de recuperação judicial, para que possa ser devidamente aprovado em assembleia de credores, depende do preenchimento de determinado quórum a depender da classe de cada crédito, nos termos do art. 45 da lei 11.101/05, utilizando-se o princípio majoritário.

Em outros termos, nem todos os credores que sofreram deságio em suas dívidas necessitam aprovar o plano de recuperação judicial, pois ainda há a possibilidade de o plano ser aprovado pelo Juízo sem que se chegue ao quórum necessário (cram down).

O problema surge, assim, quando se entende que o deságio é um ato voluntário de liberalidade - e não é. Trata-se, em verdade, de uma tentativa de preservar algum retorno, mesmo que parcial, diante de um cenário de inadimplência iminente, o que reforça, por meio do art. 47 da lei 11.101/05, que a finalidade do processo recuperacional é justamente a preservação da empresa e de sua função social.

Portanto, penalizar o devedor com a incidência de IRPF e CSLL sobre o deságio das dívidas de titularidade dos credores é contrariar a lógica da recuperação judicial.

Sob o ponto de vista tributário, também não há como sustentar a incidência do imposto, pois a tributação de valores que não ingressam no patrimônio do contribuinte afronta o artigo 43 do CTN, que exige disponibilidade de riqueza. Ainda mais grave é o fato de a Receita pretender tributar o deságio no momento da homologação do plano, ignorando que os pagamentos - se ocorrerem - serão parcelados e incertos, ferindo essa antecipação o regime de caixa, a razoabilidade e o equilíbrio da tributação sobre fatos efetivos, e não hipotéticos.

Conforme ensina Andrade Junior quanto ao deságio, entende-se que "se trata de desconto, de decréscimo de valor concedido a outrem e que não constitui acréscimo patrimonial e, quiçá, renda"3, estando na mesma toada o saudoso mestre Geraldo Ataliba4: "o conceito de receita refere-se a uma espécie de entrada. Entrada é todo o dinheiro que ingressa nos cofres de uma entidade. Nem toda entrada é receita. Receita é a entrada em que passa a pertencer à entidade. Assim, só se considera receita o ingresso de dinheiro que venha a integrar o patrimônio da entidade que a recebe", razão pela qual a pretensão fiscal não se sustenta nem sob a ótica jurídica, nem sob a perspectiva econômica.

Ainda, Minatel5 na mesma linha, elucida com precisão que"[...] nem todo ingresso tem natureza de receita, sendo imprescindível para qualificá-lo o caráter de definitividade da quantia ingressada, o que não acontece com valores só transitados pelo patrimônio da pessoa jurídica, pois são por ela recebidos sob condição [...] Há momentânea disponibilidade, é inegável, mas não com o definitivo animus rem sibi de titular, de dono, de proprietário, e sim com animus de devedor, de responsável, de obrigado", e Carvalho, ao acrescentar o conhecimento sobre o tema, define que "receita é o acréscimo patrimonial que adere definitivamente ao patrimônio da pessoa jurídica"6.

Portanto, para Andrade Junior, Ataliba, Minatel e Carvalho, só há receita quando o ingresso financeiro representa um efetivo acréscimo de riqueza, que se incorpora, sem condição, ao patrimônio jurídico da entidade.

Esse também é o entendimento do STF, ao deixar assentado, no julgamento do RE 606.107/RS, que o conceito jurídico de receita - acolhido pela Constituição - não se confunde com a noção contábil, afirmando que: "receita bruta pode ser definida como o ingresso financeiro que se integra no patrimônio na condição de elemento novo e positivo, sem reservas ou condições".7

Ainda que se alegue que o deságio configura acréscimo patrimonial para o devedor - e não para o credor - tal entendimento também se mostra insustentável. O deságio homologado em recuperação judicial não representa ingresso efetivo de ativos, mas tão somente uma redução contábil do passivo, dependente do cumprimento incerto e parcelado do plano aprovado. Não há disponibilidade econômica nem jurídica, como exige o art. 43 do CTN, tampouco liquidez que caracterize receita.

Neste horizonte é o entendimento de Andrade Junior8 ao destacar que:  mesmo após o transcurso do lapso temporal e com a redução do passivo pela aprovação do plano de recuperação judicial, não há que se falar em tributação pelo IRPJ e CSLL, eis que esvaziado o critério material da incidência tributária, uma vez que o deságio aprovado não possui condão de riqueza nova e positiva no patrimônio da recuperada".

A simples reclassificação contábil de um valor inadimplido como "perdoado" não transforma automaticamente uma perda em riqueza, e forçar essa interpretação desvirtua a própria lógica da recuperação judicial e impõe tributação sobre uma ficção.

A operação envolvendo o deságio é, na substância, uma perda parcial de crédito, formalizada sob supervisão judicial, e considerá-la receita apenas por constar de um plano homologado é dar mais valor à aparência do que à essência. Trata-se, na prática, de uma tentativa de impor uma realização tributária forçada, sem respaldo legal, e que ignora completamente a materialidade do fato gerador, comprometendo esse tipo de formalismo a justiça fiscal e distorcendo o conceito de renda.

 

Além disso, a tentativa de justificar a tributação com base na cláusula antielisiva do art. 116, parágrafo único, do CTN também merece atenção. Essa norma se destina a impedir planejamentos artificiais, o que não é o caso, sabendo que o deságio negociado em uma recuperação judicial é real, necessário e aprovado por juízo competente, enquadrá-lo como elisão se torna uma leitura forçada que desvirtua a finalidade da norma e introduz insegurança em negociações legítimas e transparentes.

Se a interpretação da Receita Federal for mantida, o impacto será profundamente negativo sobre o funcionamento da recuperação judicial, além do que, ao tributar aquilo que é na verdade uma renúncia - por vezes não opcional - do credor, o Fisco cria um obstáculo adicional à adesão de credores a planos de reestruturação.

Em vez de estimular soluções negociadas para empresas em crise, desincentiva a cooperação e agrava o ambiente de incerteza, sendo necessário a intervenção do Poder Judiciário para corrigir esse desvio interpretativo, reafirmando os limites constitucionais da tributação e restaurando a segurança jurídica - tal como assegurado no caput do art. 5º da Constituição Federal.

https://www.migalhas.com.br/depeso/438681/a-recuperacao-judicial-e-a-tributacao-do-desagio--cosit-74-25

Fonte: Migalhas.com