Opinião - A falta de regulação da telemedicina ocupacional
Área: Pessoal Publicado em 03/10/2022 | Atualizado em 23/10/2023
Fonte: Jornal Valor Econômico
A alternativa mais adequada seria possibilitar a telemedicina de acordo com cada atividade profissional
A pandemia da covid-19 transformou, sem dúvida, as formas como os serviços são prestados. O isolamento social e a necessidade de continuidade das atividades fizeram com que muitas empresas de diferentes ramos de negócio dependessem do trabalho remoto. Nesse cenário, vimos uma popularização da telemedicina em empresas, principalmente para cumprir obrigações de monitoramento de saúde dos profissionais. O tema, porém, ainda gera muito debate entre especialistas, com parte a favor e parte contra o seu uso.
Os que discordam da telemedicina nos exames ocupacionais dizem que o médico precisa da avaliação presencial para definir se o empregado está apto a trabalhar ou não. Para eles, a avaliação remota possibilita erros de diagnóstico que não ocorreriam presencialmente - a própria Associação Nacional da Medicina do Trabalho (ANAMT) já se mostrou contrária ao seu uso. Já quem é a favor acredita na telemedicina como uma modernização natural da saúde do trabalho. Em linhas gerais, o argumento é que a consolidação da ferramenta agiliza processos burocráticos das empresas e possibilita melhor acesso a um atendimento direcionado aos profissionais.
A alternativa mais adequada seria possibilitar a telemedicina de acordo com cada atividade profissional
Vemos esse embate nas próprias normas do Conselho Federal de Medicina (CFM). A possibilidade de telemedicina em exames ocupacionais é vedada no artigo 6º da Resolução nº 2.297/2021, enquanto a Resolução n° 2.314/2022 diz o contrário: que a telemedicina pode ser utilizada para “prevenção de doenças e lesões, gestão e promoção de saúde” - ou seja, ela abre a possibilidade da telemedicina para fins ocupacionais, pois o monitoramento da saúde dos trabalhadores busca exatamente prevenir doenças e lesões e garantir uma boa qualidade de vida.
Como as resoluções são incompatíveis, teoricamente devemos considerar o critério cronológico para definir qual norma vale na prática. Sendo assim, a vedação prevista na Resolução 2.297, por ser mais antiga, perderia sua validade para permitir o uso da telemedicina em exames ocupacionais. Essa revogação, porém, ainda não foi expressa em nenhuma outra regulação, o que traz uma imensa insegurança jurídica para empresas que consideram essa alternativa.
Para resolver o impasse, os projetos de lei nº 1.998/2020 e nº 4.223/2021 tramitam no Congresso para regulamentar a telemedicina de forma definitiva e transparente. Mas mesmo entre eles vemos divergências: uma emenda do senador Mecias de Jesus (Republicanos-RR) autoriza a telemedicina de forma irrestrita, enquanto outra, do senador Izalci Lucas (PSDB-DF), é mais específica e determina que o exame físico ocupacional deve ser realizado de forma presencial caso os recursos tecnológicos disponíveis não permitam uma avaliação médica adequada.
O debate é complexo e ainda está longe de um consenso. Portanto, também não está isento de novos riscos jurídicos e ainda exige reflexão e ajustes para acomodar o monitoramento de saúde de empregados de forma adequada.
A despeito disso, a verdade é que muitos exames admissionais se tornaram uma mera formalidade administrativa, e são realizados sem uma análise aprofundada de médicos que conhecem a realidade da empresa, seus documentos de saúde e segurança, as atividades profissionais executadas e o histórico de doenças dos empregados. Algumas profissões precisam desse olhar mais cauteloso do médico do trabalho, tornando o exame presencial imprescindível. Por exemplo, nos casos de quem trabalha em espaços confinados e em alturas elevadas, funções que exigem atestados especificando a aptidão para as atividades em vista do alto risco associado.
Com o teletrabalho e a popularização da telemedicina em diversas áreas da saúde, porém, optar por sua proibição irrestrita no ambiente de trabalho também seria inviável - e até uma contradição em si, uma vez que erros de diagnóstico em exames remotos de outras áreas também não deveriam ser admitidos. Essa restrição também é um entrave às empresas que têm profissionais alocados em diferentes regiões do país ou no exterior e que poderiam se aproveitar de um serviço de telemedicina centralizado, ciente da realidade da profissão e atento aos programas e diretrizes da empresa e de sua equipe de saúde.
Em casos assim, exames protocolares e feitos superficialmente poderiam dar lugar a exames direcionados, contextualizados à realidade de cada empresa e que ofereçam uma visão ampla das condições dos empregados às equipes de saúde internas. O propósito dos exames periódicos seria totalmente alcançado com essa evolução.
Por isso, a alternativa mais adequada seria possibilitar a telemedicina de acordo com cada atividade profissional, atribuindo ao médico coordenador do programa de saúde ocupacional a definição de quais funções poderiam ter exames remotos - afinal, esse profissional tem acesso aos programas internos da empresa, conhece os riscos de cada ocupação e tem acesso aos dados dos relatórios anuais, que compilam taxas de adoecimento do quadro de empregados.
Em síntese, precisamos de uma medicina do trabalho que se adeque à realidade das profissões, em linha com o mercado e os diferentes setores econômicos e que possibilitem meios mais modernos de atendimento aos pacientes e de monitoramento da saúde dos empregados. Antes de alcançar esse patamar, é extremamente necessária uma revisão e atualização efetiva das disposições jurídicas sobre a telemedicina, de forma que ofereça segurança total às empresas e possibilite que os médicos do trabalho utilizem a ferramenta com o seu potencial máximo.
Priscila Kirchhoff e Julia Pereira são, respectivamente, sócia e associada do grupo trabalhista do Trench Rossi Watanabe Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico.
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A alternativa mais adequada seria possibilitar a telemedicina de acordo com cada atividade profissional
A pandemia da covid-19 transformou, sem dúvida, as formas como os serviços são prestados. O isolamento social e a necessidade de continuidade das atividades fizeram com que muitas empresas de diferentes ramos de negócio dependessem do trabalho remoto. Nesse cenário, vimos uma popularização da telemedicina em empresas, principalmente para cumprir obrigações de monitoramento de saúde dos profissionais. O tema, porém, ainda gera muito debate entre especialistas, com parte a favor e parte contra o seu uso.
Os que discordam da telemedicina nos exames ocupacionais dizem que o médico precisa da avaliação presencial para definir se o empregado está apto a trabalhar ou não. Para eles, a avaliação remota possibilita erros de diagnóstico que não ocorreriam presencialmente - a própria Associação Nacional da Medicina do Trabalho (ANAMT) já se mostrou contrária ao seu uso. Já quem é a favor acredita na telemedicina como uma modernização natural da saúde do trabalho. Em linhas gerais, o argumento é que a consolidação da ferramenta agiliza processos burocráticos das empresas e possibilita melhor acesso a um atendimento direcionado aos profissionais.
A alternativa mais adequada seria possibilitar a telemedicina de acordo com cada atividade profissional
Vemos esse embate nas próprias normas do Conselho Federal de Medicina (CFM). A possibilidade de telemedicina em exames ocupacionais é vedada no artigo 6º da Resolução nº 2.297/2021, enquanto a Resolução n° 2.314/2022 diz o contrário: que a telemedicina pode ser utilizada para “prevenção de doenças e lesões, gestão e promoção de saúde” - ou seja, ela abre a possibilidade da telemedicina para fins ocupacionais, pois o monitoramento da saúde dos trabalhadores busca exatamente prevenir doenças e lesões e garantir uma boa qualidade de vida.
Como as resoluções são incompatíveis, teoricamente devemos considerar o critério cronológico para definir qual norma vale na prática. Sendo assim, a vedação prevista na Resolução 2.297, por ser mais antiga, perderia sua validade para permitir o uso da telemedicina em exames ocupacionais. Essa revogação, porém, ainda não foi expressa em nenhuma outra regulação, o que traz uma imensa insegurança jurídica para empresas que consideram essa alternativa.
Para resolver o impasse, os projetos de lei nº 1.998/2020 e nº 4.223/2021 tramitam no Congresso para regulamentar a telemedicina de forma definitiva e transparente. Mas mesmo entre eles vemos divergências: uma emenda do senador Mecias de Jesus (Republicanos-RR) autoriza a telemedicina de forma irrestrita, enquanto outra, do senador Izalci Lucas (PSDB-DF), é mais específica e determina que o exame físico ocupacional deve ser realizado de forma presencial caso os recursos tecnológicos disponíveis não permitam uma avaliação médica adequada.
O debate é complexo e ainda está longe de um consenso. Portanto, também não está isento de novos riscos jurídicos e ainda exige reflexão e ajustes para acomodar o monitoramento de saúde de empregados de forma adequada.
A despeito disso, a verdade é que muitos exames admissionais se tornaram uma mera formalidade administrativa, e são realizados sem uma análise aprofundada de médicos que conhecem a realidade da empresa, seus documentos de saúde e segurança, as atividades profissionais executadas e o histórico de doenças dos empregados. Algumas profissões precisam desse olhar mais cauteloso do médico do trabalho, tornando o exame presencial imprescindível. Por exemplo, nos casos de quem trabalha em espaços confinados e em alturas elevadas, funções que exigem atestados especificando a aptidão para as atividades em vista do alto risco associado.
Com o teletrabalho e a popularização da telemedicina em diversas áreas da saúde, porém, optar por sua proibição irrestrita no ambiente de trabalho também seria inviável - e até uma contradição em si, uma vez que erros de diagnóstico em exames remotos de outras áreas também não deveriam ser admitidos. Essa restrição também é um entrave às empresas que têm profissionais alocados em diferentes regiões do país ou no exterior e que poderiam se aproveitar de um serviço de telemedicina centralizado, ciente da realidade da profissão e atento aos programas e diretrizes da empresa e de sua equipe de saúde.
Em casos assim, exames protocolares e feitos superficialmente poderiam dar lugar a exames direcionados, contextualizados à realidade de cada empresa e que ofereçam uma visão ampla das condições dos empregados às equipes de saúde internas. O propósito dos exames periódicos seria totalmente alcançado com essa evolução.
Por isso, a alternativa mais adequada seria possibilitar a telemedicina de acordo com cada atividade profissional, atribuindo ao médico coordenador do programa de saúde ocupacional a definição de quais funções poderiam ter exames remotos - afinal, esse profissional tem acesso aos programas internos da empresa, conhece os riscos de cada ocupação e tem acesso aos dados dos relatórios anuais, que compilam taxas de adoecimento do quadro de empregados.
Em síntese, precisamos de uma medicina do trabalho que se adeque à realidade das profissões, em linha com o mercado e os diferentes setores econômicos e que possibilitem meios mais modernos de atendimento aos pacientes e de monitoramento da saúde dos empregados. Antes de alcançar esse patamar, é extremamente necessária uma revisão e atualização efetiva das disposições jurídicas sobre a telemedicina, de forma que ofereça segurança total às empresas e possibilite que os médicos do trabalho utilizem a ferramenta com o seu potencial máximo.
Priscila Kirchhoff e Julia Pereira são, respectivamente, sócia e associada do grupo trabalhista do Trench Rossi Watanabe Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico.
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