Opinião - A dispensa em massa e o julgamento do STF
Área: Pessoal Publicado em 27/09/2022
Fonte: Jornal Valor Econômico
A experiência nos mostra que a forma de desligamento dos empregados é determinante na existência ou não de futura ação trabalhista
É de conhecimento comum que, no Brasil, as leis não acompanham a realidade. Essa ideia é ainda mais acentuada com a conjuntura atual: startups, inflação, fintechs, recessão e pandemia são só alguns pontos que causam transformações cotidianas e que geram efeitos no mundo jurídico, sem a respectiva resposta legislativa.
A demissão em massa é um dos temas que não escapa desse quadro. Em que pese existir discussão doutrinária há décadas, a legislação ordinária e constitucional nunca tratou efetivamente da questão. Por muito tempo não houve verdadeiro enfrentamento da matéria e estabelecimento de critérios objetivos para os casos concretos.
A experiência nos mostra que a forma de desligamento é determinante na existência ou não de futura ação trabalhista
Tradicionalmente, as dispensas coletivas eram tratadas com a mesma lógica das individuais, ou seja, que existe um direito unilateral (potestativo) do empregador em dispensar os empregados sem justa causa.
A lei que introduziu a reforma trabalhista alterou substancialmente o tema ao prever expressamente o entendimento tradicional, equiparando as dispensas coletivas às individuais, sem necessidade de autorização ou negociação coletiva para efetivação.
A novidade legislativa acabou, em tese, com a discussão sobre a validade ou não da renúncia à Convenção 158 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Esse instrumento basicamente defende a proibição da demissão sem justa causa, além de criar uma série de procedimentos para a rescisão, o que atualmente não existe no ramo privado.
Ocorre que, recentemente, no Supremo Tribunal Federal (STF), foi proposta a tese de que a intervenção sindical prévia é exigência imprescindível para a dispensa em massa de trabalhadores. O caso concreto decorreu de análise da demissão de mais de quatro mil empregados da empresa Embraer e da Eleb Equipamentos, em 2009, exatamente sobre a premissa de invalidade pela ausência de negociação prévia com entidades coletivas. À época, esse número correspondia a algo próximo a 20% dos trabalhadores (o total era superior a 20 mil).
Nada mais conveniente, nos parece, quando infelizmente tem sido comum acompanhar notícias de dispensas em massa, especialmente na área de startups e fintechs no Brasil e no mundo.
As repercussões práticas do entendimento, contudo, ainda estão em aberto e é necessário aguardar a publicação da decisão. De plano, pondera-se que “intervenção” não se confunde com negociação ou autorização sindical. Mesmo sem existir tal previsão legal, a lógica do STF foi privilegiar as entidades coletivas na situação delicada das demissões em massa.
A premissa é de fomentar o diálogo honesto, de boa-fé, e que possa suprir, ao fim, a necessidade de atuação do Judiciário em questões similares, com objetivo de dar alguma segurança ao trabalhador. Justo: em tese, os sindicatos da categoria são os mais próximos da realidade daqueles trabalhadores e podem resolver diversas questões de maneira célere, diferentemente do Judiciário.
Se discutirá, contudo, se a imposição de “mero procedimento” não infringe a atual legislação, bem como se, na prática, os sindicatos criarão barreiras intransponíveis ao processo de demissão. Além disso, o próprio alcance da “intervenção” é questionável. O que significará a intervenção na prática? Até onde os sindicatos terão espaço para impedir, modificar ou auxiliar os empregados sendo dispensados?
Outro ponto que ainda merece esclarecimento é quanto ao critério objetivo de demissão coletiva. Afinal, qual é o número ou percentual de empregados desligados que necessitará da participação do sindicato?
Imaginemos a demissão de 50 empregados de uma determinada empresa. O número, por si só, representa um desligamento coletivo? É necessário verificar o número de empregados do setor? Ou do estabelecimento inteiro? Dirá o sindicato quando uma demissão é coletiva ou não? Enfim, certamente existirão discussões quanto à necessidade de intervenção por conta da ausência de critério objetivo e caberá ao Judiciário, novamente, interpretara e balizar as situações, situação que sempre é morosa.
Demais disso, não houve modulação da decisão, é dizer, não se sabe a partir de quando ela surtirá efeitos, o que causa desconforto no âmbito judicial e na prática.
Outro fenômeno relacionado aos desligamentos em massa está no procedimento interno de sua realização. Causou espanto o noticiado no sentido de que muitas demissões têm ocorrido de forma totalmente virtual (o que não gera problema por si só), mas de modo coletivo, com os empregados afetados em uma mesma sala de reuniões.
Em algumas situações noticiadas, por exemplo, se constatou que a “reunião de desligamento” durou poucos minutos e não houve qualquer explicação, por mínima que fosse, dos motivos do desligamento ou dos próximos passos. Tudo que se sabia era a necessidade de retirar/entregar documentos em um local combinado. Nada mais.
Tal hipótese é muito pragmática, mas pode gerar efeitos de cunho indenizatório. Assim, deve ser evitada. O momento rescisório é delicado e único para cada empregado, já que gera uma série de dúvidas e angústias. Sua realização, portanto, de modo “público” (aos demais empregados) e coletivo, pode dar ensejo a reparação por dano moral, inclusive com propositura de ação coletiva por parte do ente sindical ou do Ministério Público do Trabalho.
Diante desse panorama, é importante aguardar a publicação final da decisão para compreender o seu verdadeiro alcance. Por ora, cautela: a experiência nos mostra que a forma de desligamento dos empregados é determinante na existência ou não de futura ação trabalhista, seja ela individual ou coletiva.
Maury Cequinel é advogado do Departamento Trabalhista da Andersen Ballão Advocacia
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A experiência nos mostra que a forma de desligamento dos empregados é determinante na existência ou não de futura ação trabalhista
É de conhecimento comum que, no Brasil, as leis não acompanham a realidade. Essa ideia é ainda mais acentuada com a conjuntura atual: startups, inflação, fintechs, recessão e pandemia são só alguns pontos que causam transformações cotidianas e que geram efeitos no mundo jurídico, sem a respectiva resposta legislativa.
A demissão em massa é um dos temas que não escapa desse quadro. Em que pese existir discussão doutrinária há décadas, a legislação ordinária e constitucional nunca tratou efetivamente da questão. Por muito tempo não houve verdadeiro enfrentamento da matéria e estabelecimento de critérios objetivos para os casos concretos.
A experiência nos mostra que a forma de desligamento é determinante na existência ou não de futura ação trabalhista
Tradicionalmente, as dispensas coletivas eram tratadas com a mesma lógica das individuais, ou seja, que existe um direito unilateral (potestativo) do empregador em dispensar os empregados sem justa causa.
A lei que introduziu a reforma trabalhista alterou substancialmente o tema ao prever expressamente o entendimento tradicional, equiparando as dispensas coletivas às individuais, sem necessidade de autorização ou negociação coletiva para efetivação.
A novidade legislativa acabou, em tese, com a discussão sobre a validade ou não da renúncia à Convenção 158 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Esse instrumento basicamente defende a proibição da demissão sem justa causa, além de criar uma série de procedimentos para a rescisão, o que atualmente não existe no ramo privado.
Ocorre que, recentemente, no Supremo Tribunal Federal (STF), foi proposta a tese de que a intervenção sindical prévia é exigência imprescindível para a dispensa em massa de trabalhadores. O caso concreto decorreu de análise da demissão de mais de quatro mil empregados da empresa Embraer e da Eleb Equipamentos, em 2009, exatamente sobre a premissa de invalidade pela ausência de negociação prévia com entidades coletivas. À época, esse número correspondia a algo próximo a 20% dos trabalhadores (o total era superior a 20 mil).
Nada mais conveniente, nos parece, quando infelizmente tem sido comum acompanhar notícias de dispensas em massa, especialmente na área de startups e fintechs no Brasil e no mundo.
As repercussões práticas do entendimento, contudo, ainda estão em aberto e é necessário aguardar a publicação da decisão. De plano, pondera-se que “intervenção” não se confunde com negociação ou autorização sindical. Mesmo sem existir tal previsão legal, a lógica do STF foi privilegiar as entidades coletivas na situação delicada das demissões em massa.
A premissa é de fomentar o diálogo honesto, de boa-fé, e que possa suprir, ao fim, a necessidade de atuação do Judiciário em questões similares, com objetivo de dar alguma segurança ao trabalhador. Justo: em tese, os sindicatos da categoria são os mais próximos da realidade daqueles trabalhadores e podem resolver diversas questões de maneira célere, diferentemente do Judiciário.
Se discutirá, contudo, se a imposição de “mero procedimento” não infringe a atual legislação, bem como se, na prática, os sindicatos criarão barreiras intransponíveis ao processo de demissão. Além disso, o próprio alcance da “intervenção” é questionável. O que significará a intervenção na prática? Até onde os sindicatos terão espaço para impedir, modificar ou auxiliar os empregados sendo dispensados?
Outro ponto que ainda merece esclarecimento é quanto ao critério objetivo de demissão coletiva. Afinal, qual é o número ou percentual de empregados desligados que necessitará da participação do sindicato?
Imaginemos a demissão de 50 empregados de uma determinada empresa. O número, por si só, representa um desligamento coletivo? É necessário verificar o número de empregados do setor? Ou do estabelecimento inteiro? Dirá o sindicato quando uma demissão é coletiva ou não? Enfim, certamente existirão discussões quanto à necessidade de intervenção por conta da ausência de critério objetivo e caberá ao Judiciário, novamente, interpretara e balizar as situações, situação que sempre é morosa.
Demais disso, não houve modulação da decisão, é dizer, não se sabe a partir de quando ela surtirá efeitos, o que causa desconforto no âmbito judicial e na prática.
Outro fenômeno relacionado aos desligamentos em massa está no procedimento interno de sua realização. Causou espanto o noticiado no sentido de que muitas demissões têm ocorrido de forma totalmente virtual (o que não gera problema por si só), mas de modo coletivo, com os empregados afetados em uma mesma sala de reuniões.
Em algumas situações noticiadas, por exemplo, se constatou que a “reunião de desligamento” durou poucos minutos e não houve qualquer explicação, por mínima que fosse, dos motivos do desligamento ou dos próximos passos. Tudo que se sabia era a necessidade de retirar/entregar documentos em um local combinado. Nada mais.
Tal hipótese é muito pragmática, mas pode gerar efeitos de cunho indenizatório. Assim, deve ser evitada. O momento rescisório é delicado e único para cada empregado, já que gera uma série de dúvidas e angústias. Sua realização, portanto, de modo “público” (aos demais empregados) e coletivo, pode dar ensejo a reparação por dano moral, inclusive com propositura de ação coletiva por parte do ente sindical ou do Ministério Público do Trabalho.
Diante desse panorama, é importante aguardar a publicação final da decisão para compreender o seu verdadeiro alcance. Por ora, cautela: a experiência nos mostra que a forma de desligamento dos empregados é determinante na existência ou não de futura ação trabalhista, seja ela individual ou coletiva.
Maury Cequinel é advogado do Departamento Trabalhista da Andersen Ballão Advocacia
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