Na reforma tributária do consumo, o padrão são as exceções

Área: Fiscal Publicado em 02/01/2025

Na reforma tributária do consumo, o padrão são as exceções

A estrutura tributária delineada no projeto de lei complementar aprovado na Câmara dos Deputados em julho deste ano, PLP 68/2024, implica que a alíquota de referência - que já foi chamada de “alíquota-padrão” nos debates e estudos iniciais do Ministério da Fazenda - incidirá de forma exclusiva apenas sobre 45% do consumo das famílias. Ou seja, a maior parte da base do novo tributo criado pela reforma receberá tratamento diferenciado: alíquota zero ou reduzida, regime específico, ou incidência do imposto seletivo.

A simplificação da tributação de bens e serviços, reduzindo distorções que geram perda de produtividade e comprometem o crescimento econômico, tem sido o argumento central para a realização da reforma tributária. Nesse sentido, originalmente, a proposta era substituir os tributos vigentes por um imposto sobre o valor agregado (IVA) com alíquota única, combinado com um imposto seletivo sobre bens nocivos à saúde e ao meio ambiente. No entanto o PLP 68/2024, atualmente em tramitação no Senado, se distancia desse ideal a ponto de comprometer não só parcela dos ganhos esperados em termos de eficiência econômica, mas talvez a própria viabilidade operacional da reforma.

Multiplicidade de alíquotas e regimes dificulta o funcionamento do sistema de créditos previsto no caso de imposto sobre valor agregado (IVA), o qual garante que transações entre empresas, exportações e investimentos sejam isentos e evita que o imposto se torne cumulativo. Além disso, quanto maior o número de bens e serviços sujeitos a isenções e alíquotas reduzidas, maior a alíquota que deve incidir sobre os demais itens de consumo para arrecadar uma dada receita, aumentando, ao mesmo tempo, incentivos e oportunidades para sonegação e elisão fiscal e, assim, o contencioso tributário.

A reforma tributária prevê os seguintes tratamentos diferenciados: alíquota zero para a cesta básica de alimentos, 383 tipos de medicamentos e absorventes; redução de 60% da alíquota de referência para cesta estendida de alimentos, medicamentos, produtos básicos de higiene, serviços de educação e de saúde, dispositivos médicos e para pessoas com deficiência, produções artísticas e culturais, atividades desportivas e aluguel de imóveis; redução de 30% para profissionais liberais e planos de saúde para animais domésticos; regimes específicos para combustíveis, serviços financeiros, planos de saúde, bens imóveis, bares e restaurantes, hotelaria, agências de viagem e turismo e transporte coletivo de passageiros. Há ainda a criação de um imposto seletivo sobre fumo, bebidas alcoólicas e açucaradas, veículos, apostas e loterias.

Usando a última Pesquisa de Orçamentos Familiares do IBGE, simulamos as implicações redistributivas e para a alíquota de referência da seletividade acima descrita. O ponto de partida do estudo é a estimativa da carga tributária efetiva sobre o consumo das famílias no sistema vigente, equivalente a 20,1% da despesa total de consumo. Isso significa que, se o sistema atual fosse substituído por um IVA com alíquota única, essa alíquota, expressa com o imposto por fora da base, deveria ser de 25% para ser neutra em termos de arrecadação.

No entanto, com as diferenciações previstas no PLP 68/2024, a alíquota de referência estimada ultrapassa em muito o patamar de 30%. Só a isenção da cesta básica (dadas as demais isenções e reduções) eleva a alíquota de referência em 5 pontos percentuais, sendo que cerca de metade desse efeito se deve à isenção de carnes e peixes. Impacto semelhante tem a redução de 60% da alíquota de referência para os bens e serviços definidos no projeto.

Tratamento preferencial é em geral defendido com base em argumentos de justiça distributiva. Contudo, o efeito equalizador da reforma é bastante modesto, e não muito diferente do que poderia ser obtido com um IVA uniforme combinado com um cashback para as famílias de baixa renda. Alíquotas reduzidas, mesmo no caso da cesta básica de alimentos, beneficiam mais as famílias de renda mais alta. Evidência disso são os resultados da simulação que indicam que se a isenção da cesta básica, no contexto do PLP 68/2024, fosse substituída por uma transferência uniforme para todos os indivíduos na população - com impacto orçamentário igual ao da isenção da cesta - os ganhos em termos de equidade fiscal seriam maiores.

Os interesses realmente atendidos com a diferenciação das alíquotas do novo imposto são os de grupos com poder de lobby, a maioria reivindicando a manutenção de favorecimentos já existentes, embora novas isenções e reduções tenham sido criadas com a reforma. Acontece que no sistema vigente a farra da “meia entrada” é sustentada justamente pelos mecanismos e manobras que a reforma busca eliminar: tributação de insumos produtivos, investimentos e exportações, fragmentação da arrecadação em vários tributos, alíquota calculada “por dentro”. Juntas, essas estratégias têm efeito considerável sobre a arrecadação enquanto reduzem a visibilidade da carga tributária.

De fato, o sistema tributário como um todo e - consequentemente - o gasto público não são, no Brasil, resultado de um processo transparente de barganha entre sociedade e governo. Estratégias que distorcem a percepção do cidadão-contribuinte e favorecem o aumento do gasto - o que a literatura econômica chama de ilusão fiscal - têm presença marcante na nossa história fiscal. Além de opacidade na tributação, tem-se abusado de financiamento por meio de dívida pública, imposto inflacionário, empresas estatais, entre outros estratagemas. Assim, o Estado cresceu além do que se consegue hoje legitimar por um processo em que custos e benefícios são identificados e explicitados.

Todavia, a reforma tributária em andamento ainda oferecerá oportunidades de escolhas consistentes e voltadas para o bem comum. Sua viabilização prática exigirá, ao longo do processo de implementação, uma convergência significativa entre as várias alíquotas e regimes tributários. Se os ajustes necessários forem realizados com debate e transparência, sem que se recorra a soluções ilusionistas e distorcivas, será um grande avanço para o país. Transparência fiscal é necessária para a emergência de um contrato social efetivo, sem o qual não há crescimento econômico sustentável.

Fonte: Valor Econômico