A consunção e a multa prevista no artigo 572, II, do Ripi/2010
Área: Fiscal Publicado em 08/04/2025A consunção e a multa prevista no artigo 572, II, do Ripi/2010
O Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), por se tratar de imposto submetido por determinação constitucional ao princípio da não-cumulatividade, enfrenta problemas semelhantes ao ICMS em relação ao reconhecimento dos créditos referente ao imposto cobrado nas operações anteriores, mais precisamente o da necessária idoneidade do estabelecimento remetente para fins de validade dos respectivos créditos.
Na hipótese de o fisco declarar a inidoneidade dos documentos emitidos por um estabelecimento, os créditos correlatos tomados pelo adquirente só permanecem válidos se demonstrada a sua boa-fé, o que se dá mediante a comprovação da efetiva ocorrência das operações. Nesse caso, há um óbice para o efeito retroativo da declaração de inidoneidade, nos termos do que foi decidido pelo Superior Tribunal de Justiça no Tema 272, que tratou da glosa de créditos de ICMS [1].
Por se tratarem de impostos semelhantes, a ratio decidendi do Tema 272 (REsp nº 1.148.444/MG) é perfeitamente convocável em casos que envolvam a glosa de créditos de IPI, ainda que não haja uma identidade absoluta entre os casos comparados [2] e conforme precedentes do próprio STJ [3].
A teoria da consunção e seus reflexos no Direito Tributário
A ideia proveniente da teoria da consunção ou da absorção é largamente difundida no âmbito do Direito Penal. Segundo a doutrina especializada, a consunção se aplica nos casos em que há um liame de dependência lógica entre as infrações penais, de forma que a infração-meio não deve ser punida separadamente [4]. Nessa hipótese, a infração-meio é absorvida pela infração fim [5]. O objetivo, portanto, é evitar um bis in idem e, dessa forma, garantir a aplicação de uma sanção proporcional e razoável ao infrator [6].
No âmbito judicial a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é farta de exemplos em que há a aplicação dessa teoria, nos quais um tipo infracional é considerado meio para a prática de um crime-fim, sendo por ele absorvido. É o que acontece, v.g., no caso do emprego de arma de brinquedo para a tipificação do crime de roubo [7], o crime de falsidade documental (ideológica ou material) que fica absorvido pelo tipo do descaminho [8], e, ainda, o crime de falsidade que é encapado pelo de estelionato [9].
Segundo sedimentado pela doutrina e jurisprudência, para que haja a incidência da teoria da consunção é necessário a presença de 03 requisitos: (1) que a infração menos gravosa (crime-meio) seja caminho necessário para a realização daquela de maior gravidade (crime-fim) [10]; (2) existência de um liame entre a infração-meio e a infração-fim, de modo que a primeira consista em uma fase de preparação ou de execução da segunda (relação de continência) [11]; e, ainda (3) as infrações não podem ter lesividades autônomas, ou seja, não podem atacar diferentes bens da vida [12].
Tal teoria, por sua vez, é convocada pelo Direito Tributário naquelas hipóteses de infrações às obrigações tributárias. O Superior Tribunal de Justiça, por exemplo, reconhece que a infração tributária mais grave absorve a de menor gravidade, de modo a impedir a dupla penalidade pelo mesmo fato [13].
No mesmo sentido, destaca-se a recente decisão da 1ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais do Carf, ao reconhecer a impossibilidade de cumulação da multa isolada com multa de ofício, por se tratar de dupla penalização:
“CONCOMITÂNCIA DE MULTA ISOLADA COM MULTA DE OFÍCIO. DUPLA PENALIZAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. ALTERAÇÃO LEGISLATIVA. SUBSISTÊNCIA DO EXCESSO SANCIONATÓRIO. MATÉRIA TRATADA NOS PRECEDENTES DA SÚMULA CARF Nº 105. ADOÇÃO E APLICAÇÃO DO COROLÁRIO DA CONSUNÇÃO.
Não é cabível a imposição de multa isolada, referente a estimativas mensais, quando, no mesmo lançamento de ofício, já é aplicada a multa de ofício.
É certo que o cerne decisório dos Acórdãos que erigiram a Súmula CARF nº 105 foi precisamente o reconhecimento da ilegitimidade da dinâmica da saturação punitiva percebida pela coexistência de duas penalidades sobre a mesma exação tributária.
O instituto da consunção (ou da absorção) deve ser observado, não podendo, assim, ser aplicada penalidade pela violação do dever de antecipar o valor de um determinado tributo concomitantemente com outra pena, imposta pela falta ou insuficiência de recolhimento desse mesmo tributo, verificada após a sua apuração definitiva e vencimento” [14].
Apesar de todo esse retrospecto doutrinário e jurisprudencial, ainda há uma específica discussão quanto à aplicação da teoria da consunção no específico âmbito de incidência do IPI.
Multa do artigo 572, inciso II do Ripi e precedentes do Carf
Segundo o artigo 572, inciso II, do Regulamento do Imposto sobre Produtos Industrializados (Ripi) [15], a emissão de nota fiscal fora das hipóteses permitidas na legislação e que não corresponda a saída efetiva do produto descrito no documento fiscal, assim como o registro dessa nota para qualquer efeito em proveito próprio ou alheio, implica sanção equivalente ao valor comercial da mercadoria indicada em tal documento fiscal inidôneo.
Percebe-se, portanto, que nesse caso a legislação do IPI atribui multa equivalente ao valor da operação para aquele que registra crédito de IPI com base em nota com a inidoneidade acima descrita o que, em última análise, é conduta-meio para a apropriação de créditos inidôneos (conduta-fim), essa última passível de glosa com a imputação de multa limitada ao valor do imposto devido, nos termos da recente Lei nº 14.689/2023.
Em outros termos, a tomada de créditos de IPI com base em notas inidôneas, i.e., quando o adquirente não consegue comprovar sua boa-fé, pressupõe logicamente o registro de tais notas fiscais nos livros correlatos. Trata-se, portanto, de fase de execução da infração-fim (tomada indevida de crédito), para a qual a legislação prevê a glosa do crédito e aplicação da multa de ofício respectiva, qualificada, se presente o evidente intuito de fraude [16].
A conduta de registrar nota inidônea, portanto, preenche os três requisitos mencionados acima para fins de aplicação da teoria da consunção, uma vez que (1) é meio necessário para a prática da infração-fim (tomada de crédito com base em nota inidônea), (2) há um liame entre as condutas aqui analisadas, já que o registro da nota inidônea configura ato de execução para a infração-fim e, ainda, (3) o bem da vida protegido é o mesmo, qual seja, a preservação do erário, já que o que se almeja evitar com a sanção do registro indevido de notas fiscais é exatamente algum ganho fiscal/financeiro por parte do infrator, o que, no caso de um tributo não-cumulativo, só pode se traduzir pelo correlato creditamento do IPI e consequente abatimento do imposto a ser pago na operação subsequente.
Analiando os precedentes do Carf a respeito do princípio da consunção, mais precisamente aqueles da 3ª Seção do Tribunal, é possível encontrar algumas discussões que servem para nortear a resposta a ser dada no caso da multa do artigo 572, inciso II do Ripi/2010.
O primeiro precedente aqui referenciado é o Acórdão nº 3302-014.721 [17], oportunidade em que, sob acusação de interposição fraudulenta, foi aplicada a pena de perdimento, substituída pela multa proporcional ao valor aduaneiro do produto, bem como foi exigido o IPI, acrescido de multa de 150% do autuado. Nesse caso, o Carf entendeu, por unanimidade, que a multa acrescida ao tributo deveria ser afastada, por ser exaurida pela multa equivalente ao valor aduaneiro da mercadoria importada.
Outro precedente que merece destaque é o Acórdão Carf nº 3402-003.282 [18], oportunidade em que o colegiado avaliou a possibilidade de aplicação da teoria da consunção entre a multa aplicada sobre a glosa de crédito, nos termos do artigo 44, §1º da Lei nº 9.430/96 (com redação válida à época), e a multa prevista no então vigente artigo 490, inciso II, do Ripi/2002, que previa o mesmo tipo infracional do artigo 572, inciso II do Ripi/2010.
Nessa oportunidade, por voto de qualidade, o colegiado afastou o princípio da consunção ao fundamento que o cancelamento da multa prevista no artigo 490, inciso II, do Ripi/2002 implicaria afastar norma jurídica válida, vigente e eficaz [19], o que, fora das hipóteses regimentais, seria ir de encontro a competência de órgãos julgadores administrativos, que estão jungidos à lei [20].
Percebe-se, portanto, que o voto vencedor não nega a existência de consunção no caso em concreto, mas aduz não possuir competêcia regimental para afastar norma até então válida, vigente e eficaz. Tal posição, todavia, já foi superada pelo próprio Carf, o que está retratado na sua Súmula nº 105, in verbis:
“A multa isolada por falta de recolhimento de estimativas, lançada com fundamento no art. 44 § 1º, inciso IV da Lei nº 9.430, de 1996, não pode ser exigida ao mesmo tempo da multa de ofício por falta de pagamento de IRPJ e CSLL apurado no ajuste anual, devendo subsistir a multa de ofício”
Ao se analisar os precedentes que deram origem a tal súmula [21], é possível observar que todos eles afastam a multa do artigo 44 § 1º, inciso IV da Lei nº 9.430, de 1996 com base no princípio da consunção, o que, por óbvio, não implica a revogação do dispositivo, mas a sua interpretação sistemática a luz do princípio que veda o bis in idem infracional.
Conclusão
Todos os pontos aqui trazidos devem ser avaliados pelo tribunal administrativo diante da sua função julgadora e, inclusive, para que haja uma integridade [22] (artigo 926 do CPC) dos precedentes do órgão em relação a aplicação da teoria da consunção no âmbito da realização prática do Direito Tributário, de modo a evitar que as diferentes Seções do Tribunal apresentem interpretações diametralmente distintas a esse mesmo princípio.
[1] O comerciante de boa-fé que adquire mercadoria, cuja nota fiscal (emitida pela empresa vendedora) posteriormente seja declarada inidônea, pode engendrar o aproveitamento do crédito do ICMS pelo princípio da não-cumulatividade, uma vez demonstrada a veracidade da compra e venda efetuada, porquanto o ato declaratório da inidoneidade somente produz efeitos a partir de sua publicação.
[2] O que não deve causar espanto, uma vez que, salvo na hipótese das analogias matemáticas, que operam no homogêneo, todas as analogias da experiência, operam no heterogêneo. Portanto, jamais vai existir uma identidade entre os casos em comparação, mas sim uma aproximação apta a promover uma integração entre o que fora decidido no caso passado (precedente) e o que será decidido no caso presente (sub judice).
[3] A título de exemplo: AgInt no AREsp n. 1.521.871.
[4] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Geral. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2022. Livro digital.
[5] Nesse diapasão: GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal – Parte Geral. 13ª ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2021. Livro digital.; NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal – Parte Geral. 12ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022.
[6] Nesse sentido: PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. 10ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020. Livro digital.
[7] HC n. 28.367/SP.
[8] AgRg no AREsp 1.959.599/RJ.
[9] Essa hipótese, inclusive, redundou na súmula do STJ, in verbis:
Quando o falso se exaure no estelionato, sem mais potencialidade lesiva, é por este absorvido.
[10] O crime de dano, v.g., é absorvido quando empregado para a prática de um furto.
[11] É o caso da lesão corporal empregada pelo infrator com o objetivo de cometer o crime de homicídio contra a vítima.
[12] Se a infração penal menor tiver autonomia em sua ofensividade, não poderá ser absorvida pela infração maior. (BITENCOURT, Cezar Roberto. Op. Cit.).
[13] A título de exemplo:
PROCESSUAL CIVIL. TRIBUTÁRIO. VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC. DEFICIÊNCIA DA FUNDAMENTAÇÃO. SÚMULA 284/STF. MULTA ISOLADA E DE OFÍCIO. ART. 44 DA LEI N. 9.430/96 (REDAÇÃO DADA PELA LEI N. 11.488/07). EXIGÊNCIA CONCOMITANTE. IMPOSSIBILIDADE NO CASO.
(…).
A multa de ofício do inciso I do art. 44 da Lei n. 9.430/96 aplica-se aos casos de ‘totalidade ou diferença de imposto ou contribuição nos casos de falta de pagamento ou recolhimento, de falta de declaração e nos de declaração inexata’.
A multa na forma do inciso II é cobrada isoladamente sobre o valor do pagamento mensal: ‘a) na forma do art. 8° da Lei no 7.713, de 22 de dezembro de 1988, que deixar de ser efetuado, ainda que não tenha sido apurado imposto a pagar na declaração de ajuste, no caso de pessoa física; (Incluída pela Lei nº 11.488, de 2007) e b) na forma do art. 2° desta Lei, que deixar de ser efetuado, ainda que tenha sido apurado prejuízo fiscal ou base de cálculo negativa para a contribuição social sobre o lucro líquido, no ano-calendário correspondente, no caso de pessoa jurídica. (Incluída pela Lei n. 11.488, de 2007)’.
As multas isoladas limitam-se aos casos em que não possam ser exigidas concomitantemente com o valor total do tributo devido.
No caso, a exigência isolada da multa (inciso II) é absorvida pela multa de ofício (inciso I). A infração mais grave absorve aquelas de menor gravidade. Princípio da consunção. Recurso especial improvido.
(REsp 1.496.354/PR, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, 2ª TURMA, j. em 17/03/2015.) (grifos nosso).
[14] AC. 9101-007.244; Conselheiro Relator Heldo Jorge dos Santos Pereira Junior.
[15] Art. 572. Sem prejuízo de outras sanções administrativas ou penais cabíveis, incorrerão na multa igual ao valor comercial da mercadoria ou ao que lhe for atribuído na nota fiscal, respectivamente:
(…).
II – os que emitirem, fora dos casos permitidos neste Regulamento, nota fiscal que não corresponda à saída efetiva, de produto nela descrito, do estabelecimento emitente, e os que, em proveito próprio ou alheio, utilizarem, receberem ou registrarem essa nota para qualquer efeito, haja ou não destaque do imposto e ainda que a nota se refira a produto isento.
[16] O que, no âmbito do ICMS, vem sendo fartamente reconhecido pelo TIT/SP. A título de exemplo: DRT-11-692170/2007.
[17] Relator Conselheiro Lázaro Reis.
[18] Redator designado, Conselheiro Jorge Freire.
[19] Trechos do voto vencedor.
[20] Idem.
[21] 9101-001.261; 9101-001.203; 9101-001.238; 9101-001.307; 1402-001.217; 1102-00.748; 1803-001.263.
[22] De algum modo, a integridade refere-se a um freio ao estabelecimento de dois pesos e duas medidas nas decisões judiciais, constituindo-se em uma garantia contra arbitrariedades interpretativas, vale dizer, coloca efetivos freios às atitudes solipsistas-voluntaristas. (STRECK, Lênio Luiz. Disposições gerais: art. 926. In: STRECK, Lênio Luiz et al. (coord.). Comentários ao código de processo civil. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 1.186).
Fonte: Consultor Jurídico